São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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O poder de Afrodite

FILOMENA YOSHIE HIRATA

a mais estranha das tragédias de Sófocles é "As Traquínias". Um Sófocles menos comedido e, de certa forma, menos heróico põe em cena o poder devastador de Afrodite, num drama ricamente tecido e sustentado por um conjunto de potências míticas que lhe dão um clima sinistro. Entre essas, o pavoroso rio Aquelôo desejando a jovem Dejanira; o centauro Nesso que, tentando tocar Dejanira, é assassinado; o veneno da hidra de Lerna misturado ao sangue do centauro; a túnica envenenada e o oráculo de Héracles.
Ao leitor moderno, acostumado com "Édipo Rei" e "Antígona", a exploração desse material mitológico fez com que a tragédia fosse considerada uma exceção; exceção com sentido negativo, uma vez que temas éticos, políticos e religiosos de valor universal cediam lugar ao tema amoroso.
Mas não há dúvidas quanto ao sucesso dessa tragédia na Antiguidade, caso contrário ela não teria sobrevivido. Sófocles foi o poeta trágico mais reconhecido em vida e mais premiado nos concursos trágicos. Fontes antigas atribuem-lhe 123 tragédias e 18 vitórias nas Grandes Dionísias, o que não é insignificante. No entanto, nos tempos mais recentes, a reputação das "Traquínias" teve seus altos e baixos. A peça não despertou muita atenção na Idade Média e nos séculos posteriores e foi duramente criticada no século 19. Considerada inferior às outras, houve até quem levantasse a suspeita de que tivesse sido escrita por Íofon, filho de Sófocles, e erroneamente atribuída ao pai. Como nunca se pôde comprovar isso, estudiosos tentaram fazer dela uma peça da juventude e a partir daí justificar suas deficiências. Nem isso deu certo. O máximo a que se conseguiu chegar, depois de muita especulação, foi a um consenso de que "As Traquínias" não é obra da juventude e sua representação não deve estar longe da de "Édipo rei", por volta de 427 a.C.
Os helenistas do século 20 reabilitaram "As Traquínias". Duas edições comentadas e estudos importantes sobre Sófocles nos anos 80 deram à peça a devida atenção (1). Pode-se dizer, de uma forma geral, que hoje se lê a peça como ela é. Estuda-se o sutil e complexo universo amoroso do poeta, sem receio de relacioná-lo com a paixão euripidiana, com a qual tem afinidades: Dejanira está mais próxima de Medéia e Alceste que das outras mulheres de Sófocles. Quanto à crítica mais aguda em relação à estrutura, procura-se negligenciar o excesso de formalismo e entender o desequilíbrio: "As Traquínias" têm dois espaços e duas personagens que nunca se encontram, porém a desgraça percorre essa distância, unindo-as. E em relação a essa particular desatenção com a forma, que afeta o papel das personagens, restaria perguntar se Sófocles não se deu conta disso, quando deu nome à tragédia, porque só "As Traquínias" têm o nome do coro e personagens sem "têmpera heróica" que é, enfim, o traço fundamental das personagens sofocleanas (2). Aqui, ninguém luta heroicamente por um ideal, ninguém persegue obsessivamente um objetivo, sozinho, contra tudo e contra todos, como Ájax as armas de Aquiles, Antígona o sepultamento do irmão, Édipo o assassino de Laio, Electra a morte de Clitemnestra, Filoctetes a vingança contra os gregos e Édipo a ascensão final na morte ("Édipo em Colono").
A recorrência aos mitos do passado e a ênfase atribuída ao poder de Eros e Cípris obnubilam a ação de Dejanira e Héracles. Mas isso não significa ausência da ação humana, nem da responsabilidade. Mais da metade da peça pertence a Dejanira, que se lamenta da vida marcada pela infelicidade: solteira, apavorava-se com os monstros que a assediavam; casada, reclama da longa ausência do marido, dos sobressaltos da espera e da passagem do tempo. Retratada como mulher grega exemplar, centrada na vida doméstica, Dejanira encontra no coro das mulheres de Tráquis, cidade onde está exilada, um confidente atento e solidário.
No extremo oposto está Héracles. Encontra-se nas imediações de Tráquis, ultimando os preparativos da volta. É um duro retrato esse que Sófocles faz de Héracles. Diferente do Héracles de "Alceste", personagem inoportuno e fanfarrão, e também do Héracles de "Héracles Louco", herói destruidor de monstros, civilizador do universo e exemplar pai de família. Ambos de Eurípides. Na verdade, em sua tragédia, Sófocles insiste menos no heroísmo de Héracles, mas, acentuando o aspecto humano, põe em relevo não apenas seu sofrimento, mas também sua violência, autoritarismo e crueldade. O que retarda, enfim, a volta do herói à casa é a paixão arrebatadora por Íole, pela qual não hesitara em saquear a Ecália. Submetida pela lança, Íole deverá coabitar com Dejanira o teto de Héracles.
Seria tentador pensar num jogo de oposições entre o mundo civilizado de Dejanira e o mundo selvagem de Héracles. No entanto, não é isso que ocorre. Sófocles faz uma mesclagem dos dois, acentuando um pouco mais a relação de Dejanira com as potências selvagens e sobrenaturais, do que a civilidade de Héracles. Isso se evidencia desde o princípio: Dejanira, quando era jovem e bela, seduzia monstros e acaba se deixando seduzir por um matador de monstros, portanto, igualmente monstruoso.
Mais para Medéia do que para mulher grega, transtornada pelo ciúme diante da jovem e bela Íole, Dejanira só pensa em reter o marido. E assim lembra-se do filtro mágico que, outrora, o centauro Nesso lhe dera, quando morria assassinado por Héracles. Esse é o momento obscuro da tragédia. Dejanira decide usar o filtro, desconhecendo seu efeito mortal e, de repente, as potências míticas subjacentes emergem e se impõem, definindo o destino trágico das personagens. Héracles morre corroído pelo veneno, sofrendo dores atrozes, chorando como um mortal qualquer. O centauro Nesso fora seduzido por Dejanira, mas ela também se deixa seduzir, caso contrário não usaria o filtro mágico. Ocorre aqui perguntar se Dejanira cometeu uma "hamartía", um erro, nos termos propostos por Aristóteles na "Poética". Há um erro trágico, que provoca uma peripécia, mas esse erro é cometido num estado de total ignorância ou Cípris obscurece essa transparência?
O livro de Maria do Céu é constituído de uma introdução, tradução, notas e bibliografia. Merecem destaque o estudo que a autora faz da peça, apoiado numa bibliografia respeitável, e principalmente as notas minuciosas. No conjunto é um trabalho importante e respeitável pela qualidade e quantidade de informações, originalmente publicado pela Universidade de Coimbra em 1984.
A tradução é boa, correta, no sentido em que se pode cotejá-la com o texto grego original. Mas fica a dever à poesia, porque tragédia grega é poesia. Mas isso não é uma crítica, é apenas uma reflexão. Não se pode exigir que helenistas sejam também poetas. Traduzir tragédia é uma árdua tarefa e de opções. Maria do Céu traduziu em prosa as partes dialogadas e em verso os cantos corais. É um caminho, mas no grego as partes dialogadas têm apenas o metro diferente das partes corais e é difícil dar conta dessa diferença no português. Além disso, a tradução em prosa tende a ser parafrásica, isto é, amplia o texto original, expondo aquilo que a sintaxe grega omite. Enfim, a tradução é clara, mas o leitor esquece que se trata de poesia. E por falar em poesia, no extremo oposto, está a tradução de "As Traquínias" de Ezra Pound. Ora, Pound é um poeta. Fez um trabalho de impacto: tradução bonita e sobretudo instigante, marcada pela ousadia de certas soluções, concisão dos versos e enxugamento do texto. Mas muito distante do texto original.

Notas:
1. Edições comentadas: P. E. Easterling, Cambridge, 1982 e M. Davies, Oxford, 1991. Estudos: R. P. Winnington-Ingram, "Sophocles. An Interpretation", London, 1980; C. P. Segal, "Tragedy and Civilisation", Cambridge, 1981. Cito apenas essas obras com as quais me sinto em débito.
2. B. M. W. Knox, "The Heroic Temper. Studies in Sophoclean Tragedy", Berkeley, 1966.

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