São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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O social legítimo e a patota social

ROBERTO CAMPOS

De algum tempo para cá, tem aparecido em várias partes certos esforços teóricos de repensar a problemática social. A impulsão básica provém da combinação de dois elementos. Primeiro, os custos impostos pelos ajustamentos econômicos e sociais da "globalização". Segundo, o vácuo teórico deixado pela implosão do socialismo como opção política concreta.
Seria um momento muito rico para pensar. Mas juntamente com alguma reflexão autêntica, é preciso expurgar muito entulho de palavras de ordem que, nos antigos quartéis socialistas, ocupavam o espaço que deveria ser reservado às idéias. E também há curiosas variedades de anarquismo e de radicalismo (por exemplo, na esquerda "desconstrucionista", que rejeita qualquer forma de certeza científica como "dominação"). Tudo isso lembra um pouco o confuso panorama do fim do século passado e começo do atual. Mas esse tipo de fenômeno provavelmente pode ser entrevisto em todas as épocas históricas em que ocorrem grandes inflexões dos paradigmas de interpretação do mundo.
Alguns espíritos simplistas ou mal-avisados vêem no mal-estar destes tempos uma consequência da economia de mercado, que contrastam com lembranças imaginárias das várias versões do Estado do Bem-Estar Social (quando não com imagens idealizadas de um socialismo passado que nunca chegou a existir). Mas, é preciso reconhecer que as angústias na busca da segurança econômica e bem-estar social não são vôos da fantasia. Segurança e bem-estar são bens econômicos que a imensa maioria das pessoas deseja. Constituem uma das molas do comportamento humano -algo que corresponde, no plano socioeconômico, à homeostase biológica que leva o organismo a procurar manter-se intacto através de variações do meio em que se acha.
O mercado competitivo é uma arena repleta de riscos, em que o indivíduo, forçado a dar o seu máximo, às vezes, soçobra sem "culpa", por causa de fatores que lhe parecem aleatórios e fora do seu controle. Diferenças grandes de renda, sérias desigualdades de oportunidade de ascensão, manchas persistentes de pobreza (e os correspondentes desníveis ostensivos de status e de condição social) são fontes reais de angústia e ressentimento. E isso acontece no meio de formidáveis mudanças na estrutura e na operação da economia. Alguns teóricos (por exemplo, Michael Piore e Charles Sabel, do MIT) falam num novo modo de produção que estaria tomando forma: a economia flextech, baseada em conceitos "quentes" -descentralização, "terceirização", des-hierarquização, integração de concepção e execução, coordenação espontânea, módulos intercambiáveis, sistemas de aprendizado e assim por diante.
O pensamento liberal não confunde a convicção de que o máximo de liberdade nas relações só se dá em um sistema de transações contratuais livres, onde cada um exprime as suas preferências, com o desconhecimento de que esse processo tem sua contrapartida de custos humanos. O mercado não oferece a cura universal de todos os males. Ele é apenas o lugar onde se fazem as transações. Mas por mais livres que essas possam ser, não quer dizer que os participantes estejam todos em situação confortavelmente igual, nem que todos tenham informação suficientemente completa e não distorcida. Muitos dos efeitos das interações entre indivíduos têm consequências que passam além deles. Certas atividades produtivas podem ter efeitos de escala importantes, de modo que as vantagens vão se acumulando para o lado de uns e não de outros, e não é possível preverem-se completamente todos os efeitos cruzados das mudanças tecnológicas, das novas preferências e de fatores exógenos.
Onde o socialismo tropeçou em falso foi em acreditar que o simples controle do processo produtivo por um ente chamado "proletariado", "coletividade", ou lá o que fosse (na prática, sempre representado pela burocracia governamental que ocupava o poder), poderia construir sociedades sob medida, abençoadas pela abundância material, e pela igualdade e fraterna solidariedade entre os seus membros.
Os críticos da sociedade industrial contemporânea, e em particular das economias de mercado, tropeçam de entrada no fato de que achar que a realidade não é ideal não significa que se conheçam alternativas para transformá-la no sentido desejado. A forma de socialismo mais bem sucedida de todos os tempos talvez haja sido a dos Incas -uma teocracia que regulava minuciosamente a vida dos indivíduos, definia quem teria quanto de quê, entrava severamente até na vida dos casais. A segurança era total -mas também a falta de liberdade... Os socialismos de países do Leste europeu, já bastante industrializados, ofereciam também um grau relativamente elevado de segurança -mas ao preço da falta de liberdade civil e política, e de níveis de consumo muito medíocres.
A resposta liberal é a da solidariedade racional, que, preservando no possível a eficiência econômica, procurara transferir recursos dos mais bem aquinhoados para os mais carentes, e assegurar o acesso, sob a forma de bens públicos, a certos bens e serviços que dêem, mesmo aos mais pobres, um decente ponto de partida. Sabendo, é claro, que a sociedade nunca será percebida por todos como "perfeita". "Eficiência", deve-se reconhecer, é algo menos simples do que alguns partidários da economia de mercado às vezes ensinam. Mas o cerne da questão é outro. As pessoas têm interesses distintos, talvez egoísticos, e de qualquer forma frequentemente conflitantes pela simples razão de que as demandas possíveis são sempre muito maiores do que os meios de satisfazê-las. A sociedade democrática dá aos seus membros o direito de expressarem as suas divergências. Não tenta obrigar ninguém a amar o seu próximo como a si mesmo. O que pode fazer é, sem violências nem expropriações, oferecer a todos um adequado leque de bens públicos.
A legítima posição das esquerdas, hoje, seria um apostolado social, ou seja, um esforço para convencer as pessoas dos valores positivos da solidariedade, da preservação da natureza, da cultura. Feita essa conversão, os mecanismos da sociedade democrática e do mercado eficiente as traduziriam em muito maior bem-estar do que os peremptos socialismos que conhecemos. E sem sacrifício da liberdade.

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