São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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Rebeldias angelicais em um tempo perdido

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Com uma capa vermelha e dourada, que reproduz um quadro renascentista de anjos guerreiros, este livro se arrisca, ou se candidata, a ser confundido com uma daquelas publicações esotéricas sobre entidades celestes que vendem tanto hoje em dia.
Mas Anatole France (1844-1924) é bem o oposto de todo o "misticismo" atualmente em moda. Aliás, não há ninguém ninguém mais fora de moda do que Anatole France. Foi o ídolo da geração do pai de Carlos Heitor Cony; em sua viagem ao Brasil, foi recebido com glórias por Ruy Barbosa. Ganhou o Prêmio Nobel em 1921.
Foi admirado -e detestado em seguida- por seu famoso ceticismo. Feitos de ironia amável, de alfinetadas anticlericais, de intriga mundana, filosofia leve e estilo cristalino (talvez fosse melhor dizer: vítreo), os romances de Anatole -todos os seus admiradores tratavam-no pelo primeiro nome- não resistem muito ao tempo.
O que têm, ou tinham, de melhor é a graça com que criticavam a França carola de seu tempo. A conspiração dos padres reacionários contra a República, o interesse da Igreja em preservar a ignorância, o preconceito, os privilégios, o poder da burrice, enfim, era o que Anatole France denunciava, com ironia, nos seus livros. É um coadjuvante chique de Zola, na época do caso Dreyfus (1895), grande batalha política da esquerda contra o anti-semitismo e o militarismo conservador.
Hoje a crendice é mais amena e apolítica, infantiliza-se na moda dos duendes e dos anjos, e este livro de Anatole France, se nos ajuda a manter a lucidez, é bastante inócuo ideologicamente.
Conta-se a história de Maurice d'Esparvieu, jovem bem-nascido e bem-pensante, dissipador e tonto: estripulias com amantes, envolvimentos com a boêmia parisiense. Mas também se conta a história do anjo da guarda de Maurice, que se engaja numa rebelião.
É uma rebelião contra Deus, esse Javé incompetente e militarista, causador ignaro de desgraças e sofrimentos à humanidade. Vários anjos, tomando forma humana (o autor brinca com um par de asas que, guardado no armário, é roído pelas traças), planejam um assalto ao Céu, enquanto levam vida errante e suspeita nos bas-fonds de Paris.
Anatole France não é tão cético quanto se pensa. Ao mesmo tempo que ironiza a religião católica, não poupa críticas aos revolucionários, aos reformadores sociais puritanos que na época pululavam em Paris. Os "anjos" de Anatole France são os subversivos e boêmios de sempre. Há traços também de anti-semitismo no livro; zombando dos católicos, o autor não resiste a falar de um riquíssimo banqueiro judeu que financia a rebelião.
O ponto central de "A Rebelião dos Anjos" são os capítulos em que um dos revoltosos reescreve a história da humanidade, num longo discurso em favor do paganismo -religião do prazer e da vida, contra o culto ao sofrimento e a morbidez do cristianismo. São páginas que merecem ser lidas.
Sendo este um dos últimos livros escritos por Anatole France, ressente-se de uma "missão" de sabedoria, de uma militância ensaística; o enredo é insignificante, os personagens sofrem de uma irrealidade que, mesmo em se tratando de anjos, vai um pouco além do desejável.
E mesmo essa sabedoria, esse cunho ensaístico do livro, se prejudica pelo excesso de amabilidade, pelo prazer de virtuose que há em se mostrar sutil, num exibicionismo do tato. "Anatole France é o triunfo do eufemismo", disse André Gide, outro escritor aliás fora de moda.
Tudo é gracioso e descompromissado. Alguns exemplos da sabedoria de Anatole France: Deus "era sustentado pelos padres, que acreditavam nele. Hoje, tem por apoio aqueles que não acreditam nele, os filósofos". Um anjo diz: "Os campanários, madame, erguem-se para o céu como gigantescas seringas em busca das bundinhas nuas dos querubins". Quando a revolta parece eclodir, "os exércitos do Deus vivo tinham tomado a ofensiva; mas por uma dessas fatalidades que, na guerra, atrapalha os melhores planos dos maiores capitães, os inimigos também tomaram a ofensiva".
O humor é todo desse gênero. A revolta de Anatole France é angelical demais para ser revolta. Ele está para o ateísmo assim como uma comédia picante de bulevar está para a pornografia. O livro diverte, mas suas críticas, por medo de serem chocantes ao leitor da época, terminam presas na armadilha de sua própria época. O que se pretendia sutil hoje parece apenas bem-comportado.

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