São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 1996
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Para ir à Bienal

OTAVIO FRIAS FILHO

O anúncio da Bienal de São Paulo na televisão é de um deboche quase inacreditável. Enquanto uma voz com sotaque acadêmico discorre no jargão nebuloso e abstrato da crítica de arte, os letreiros na tela dão as informações necessárias: onde é, quanto custa, como reservar seu ingresso sem passar por filas etc.
Como a publicidade moderna tem de ser humorística, logo percebemos que por trás de seu bestialógico empolado a voz se limita a traduzir o prosaísmo dos letreiros. A "mensagem" aproxima o público e a mostra que ele deve ver, ao supor uma ironia cúmplice, leiga, voltada contra as complicações dos "entendidos".
Ao mesmo tempo o anúncio desvenda, embora involuntariamente, todo o mecanismo da "crise da arte", que se arrasta há décadas: a evaporação das obras; a hipertrofia da crítica no esforço para preencher o vazio; a atitude lúdica de um público convidado a "interagir" como se estivesse num parque de diversões.
O curador da Documenta de Kassel, na Alemanha, admitiu recentemente não saber definir o que é arte. Antes o tema era o "fim do suporte" (tela, tinta, metal), agora é a "desmaterialização", mas o tempo todo se trata de uma mesma coisa, de um mesmo colapso que os eufemismos tentam contornar em vão.
É como se a linguagem da arte tivesse sido tragada pela técnica, pelo consumo, pela própria publicidade, disseminada ao longo da estetização da vida cotidiana, posta a serviço da razão utilitária. Ela perde assim as suas fronteiras, mas perde também concentração, autonomia, originalidade, perde enfim o poder de revelar.
Em qualquer das exibições que ocorrem no Ibirapuera, junto com a Bienal, pode-se testemunhar o esforço às vezes comovente para reconquistar o que foi perdido. Mas quase tudo cai no vazio da alma, depois de durar alguns segundos na surpresa de um trocadilho, num susto de trem-fantasma, num efeito de cenografia.
Ainda há pouco os jornais publicaram casos de artistas cuja obra consiste em filmar a mutilação do próprio corpo em cirurgias performáticas, ou seguir um desconhecido durante meses para escrever uma novela sobre ele. As mostras de São Paulo poupam o público de presenciar essas experiências temerárias.
O culto à criatividade do artista e à explosão de todas as diferenças gerou uma uniformidade tediosa. A quebra dos padrões gerou um cânone recreativo, intuído pelo público: esta é uma obra de olhar e achar graça, aquela outra é de pôr a mão, ali tem uma que é de entrar dentro, aquele guarda é uma instalação.
A grande "novidade" da Bienal são telas de um pintor do século passado, o norueguês Edvard Munch (1863-1944), no centro da área comicamente chamada de "espaço museológico", no terceiro andar. Vale começar a visita por Munch, até porque ele é um dos responsáveis por tudo o que está nos pisos inferiores.

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