São Paulo, sábado, 19 de outubro de 1996
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Leonardo e os investimentos

RUBENS RICUPERO

É possível reunir numa sala para discutir o papel dos investimentos estrangeiros pessoas com interesses tão diversos como os presidentes da Nestlé e outras grandes transnacionais, os ministros de alguns dos países mais pobres do mundo como Uganda ou Bangladesh, de nações-continentes como a China e a Índia, representantes da Europa, dos EUA, do Japão, jornalistas, pesquisadores, câmaras de comércio, entidades não-governamentais?
Foi o que acabou de fazer em Genebra a nova Unctad, renascida das cinzas do confronto ideológico Norte-Sul e hoje empenhada em enfrentar o maior desafio da ONU neste fim de século: como integrar no processo decisório internacional, até ontem monopólio dos governos, setores da sociedade civil cada vez mais influentes como as transnacionais, as ONGs, os centros de pesquisa, as igrejas.
O debate se concentrou em torno da seguinte pergunta: deve-se continuar a tratar os investimentos estrangeiros na base dos acordos bilaterais ou regionais que se multiplicam a cada ano ou será necessário negociar uma espécie de código mundial dos investimentos como começaram a fazer os países desenvolvidos no seu "clube" exclusivo, a OCDE, ou, como preferem outros, levar as negociações para a OMC (Organização Mundial do Comércio)?
A discussão mostrou que ninguém tem, no fundo, idéia precisa de como seria o formato final de tal código, uma vez que as negociações na OCDE envolvem menos de 30 países, todos desenvolvidos, e ainda não chegaram ao término.
Em consequência, tanto os defensores como os opositores da idéia argumentam em termos do conteúdo hipotético de um eventual e futuro acordo multilateral não existente. Defende-se ou ataca-se o que não passa de moinhos de vento construídos pela imaginação.
Em tese, um código mundial corresponde ao que Leonardo da Vinci dizia da pintura. É uma "cosa mentale", isto é, uma construção idealizada do espírito, desprovida do conteúdo concreto que só lhe pode ser dado por negociações entre as partes. A estas compete, como em toda negociação, equilibrar direitos e obrigações, a fim de que o resultado possa ser visto por todos como de benefício e interesse comum.
Essa simetria entre os objetivos dos poucos países exportadores de capitais e dos muitos interessados em recebê-los terá de ser construída nas áreas descritas a seguir.
1ª) Aspectos jurídicos: a tarefa aqui será de equilibrar, de um lado, o direito de não sofrer expropriação sem justa compensação, o "direito de estabelecimento", isto é, de investir em qualquer setor, com o menor número possível de restrições, de receber o mesmo tratamento que os nacionais e de não ser discriminado em relação a terceiras nacionalidades com, do outro lado, o direito governamental de regulamentação para garantir o comportamento esperado do investidor e a preservação de grau razoável de seletividade na aceitação e localização dos investimentos.
2ª) Aspectos financeiros: se o investidor deve ter o direito de remessa de lucros e repatriação do capital, o governo não pode, de outra parte, ficar privado da possibilidade, em crises do balanço de pagamentos, de evitar fugas maciças de capital, sobretudo do tipo especulativo, como o ocorrido, por exemplo, após a crise mexicana.
3ª) Aspectos tecnológicos: a propriedade intelectual, as patentes, a tecnologia são direitos do investidor a serem respeitados, mas devem ser harmonizados com o interesse do país recipiendário no sentido de que o investimento estrangeiro promova a elevação geral e a disseminação do nível tecnológico, da capacidade gerencial e do desenvolvimento de um potencial autônomo de pesquisa local.
4ª) Aspectos de competição: o direito de controlar em 100% as filiais sem a obrigação de aceitar parcerias não desejadas necessita obviamente ser equilibrado com leis antitruste protetoras das pequenas e médias empresas, bem como com normas capazes de evitar as chamadas "práticas restritivas de negócios", isto é, entendimentos internos às firmas, que reservam determinados mercados às exportações de matriz ou de uma outra filial.
Existem ainda outros numerosos elementos a serem considerados no tratamento de um assunto de extrema complexidade, pois se trata não de mera questão setorial, mas de tema sistêmico, por envolver a mobilidade de um dos fatores da produção. Em última análise, porém, o problema se resume em saber se o aumento dos investimentos estrangeiros esperado teoricamente de um tratado desse tipo justifica ou compensa a inevitável redução na capacidade de cada governo de recorrer a certos incentivos para promover sua política industrial ou tecnológica e para controlar suas contas externas.

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