São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 1996
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Renda mínima é 'rede' de proteção, diz especialista

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Dez dos 18 países da União Européia já colocaram em prática algum programa de renda mínima.
Neles, a questão é hoje consensual entre partidos que, em geral, divergem sobre a orientação de outras políticas públicas.
É o que diz um dos maiores especialistas mundiais sobre programas de renda mínima, Philippe Van Parijs, 45, professor da Universidade de Louvain, na Bélgica.
Parijs participou na semana passada, na PUC-SP, de um seminário internacional sobre o tema.
Amanhã ele será recebido, no Planalto, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
Eis os principais trechos de sua entrevista à Folha:
Folha - Quantos países já colocaram em prática algum tipo de programa de renda mínima?
Philippe Van Parijs - Há os Estados Unidos, a Nova Zelândia, a Austrália. Entre os 18 países da União Européia, 10 adotam algum tipo de programa com essas características.
Folha - Mas os programas europeus não teriam mais o perfil do seguro-desemprego?
Parijs - O seguro-desemprego também é adotado, mas com uma diferença fundamental: a ele têm direito apenas aqueles que já contribuíram para o sistema de Seguridade Social. É como se fosse uma apólice que pode, em determinado momento, reverter em benefícios.
A renda mínima, ao contrário, beneficia qualquer cidadão ou residente em determinado país, mesmo que ele não tenha contribuído para os fundos de assistência aos desempregados.
Folha - O Japão e os demais "tigres asiáticos" não têm nada semelhante?
Parijs - Apesar de legislações sociais por vezes bem avançadas, como no Japão, que eu saiba, não.
Folha - Não haveria um paradoxo no fato de a renda mínima estar se propagando bem no momento em que o Estado do Bem-Estar Social entra mundialmente em colapso?
Parijs - Sim e não. Vejamos o caso dos Estados Unidos. Todos os programas assistenciais estão em nítido recuo, em razão de problemas de política interna que conhecemos (os republicanos, majoritários no Congresso, impõem cortes no orçamento previdenciário).
Estão sendo prejudicados, com isso, setores que incluem mães solteiras desempregadas, ou, na linguagem técnica, desempregados que são cabeças únicas de suas famílias.
Mas, na Europa, um número crescente de pessoas que antes se beneficiavam de programas de assistência ao desempregado passou a preencher os requisitos para receber a renda mínima.
A própria crise do Estado do Bem-Estar Social faz com que as caixas de auxílio ao desempregado estejam hoje mais vazias.
Veja por exemplo o caso da França, que em 1988 lançou o programa de renda mínima porque o seguro-desemprego não era mais capaz de evitar que muitos caíssem num estado crônico de pobreza.
Folha - Qual a ligação entre esse fenômeno e a globalização?
Parijs - É muito clara. A mão-de-obra pouco qualificada de determinado país passa a sofrer a concorrência da mão-de-obra pouco qualificada de outros. Sobrevém o desemprego, e a renda deixa de depender da remuneração ao trabalho.
Folha - O sr. tem estatísticas sobre quantos são os beneficiários da renda mínima nesses países?
Parijs - As cifras variam bastante de um país para outro. Em países como a Bélgica e a Alemanha, por exemplo, a renda mínima pode beneficiar a poucos porque o seguro-desemprego é pago por um período bem mais longo.
Na França e na Holanda, ao contrário, os beneficiários da renda mínima são proporcionalmente mais numerosos, porque o período de pagamento do seguro-desemprego é menor e, se não encontrar trabalho, a pessoa corre o risco de ficar absolutamente sem recurso algum.
Folha - Os que recebem a renda mínima não são, em sua maioria, trabalhadores imigrantes?
Parijs - Não, e seria um engano acreditar nisso. Digamos que, em termos demográficos, há num país como o meu, a Bélgica, uma super-representação dos estrangeiros nas folhas de seguro-desemprego e uma sub-representação nos programas de renda mínima. Na Holanda e na Alemanha ocorre mais ou menos o mesmo.
Folha - Quanto recebe de renda mínima um cidadão belga?
Parijs - Se for um adulto solteiro, sem filhos, ele receberá cerca de R$ 600 por mês. Se for um casal sem filhos, receberá pouco mais de R$ 800, o que corresponde a um salário mínimo. Trata-se de uma quantia muito parecida à que existe em outros países europeus.
Folha - Os programas de renda mínima surgiram por pressão apenas dos partidos da esquerda e da social-democracia?
Parijs - Não. As adoções geralmente ocorrem em meio a um consenso político muito amplo. Os democratas-cristãos, por exemplo, têm tido um papel muito importante. Na França, só a extrema direita se opôs.
Folha - Os mecanismos de renda mínima são satisfatórios ou precisam ser modificados?
Parijs - Há toda uma discussão em curso. Caminha-se para soluções que levarão o beneficiado a continuar a receber a renda mínima mesmo se ele encontrar um emprego em tempo parcial ou mal remunerado, que lhe garanta uma renda parecida à do benefício social que ele já estava recebendo.
Há, assim, um estímulo à aceitação de empregos pouco qualificados. Com isso, impede-se que se prolongue a marginalização do cidadão e não se propague uma mentalidade que hoje prevalece no Congresso dos Estados Unidos.
Naquele país, como se sabe, cresceu a idéia de que o corte dos programas de assistência seriam um incentivo à diminuição do desemprego, já que os desempregados, para não caírem em estado de miséria absoluta, passariam a aceitar qualquer trabalho.
Folha - Assim, pela proposta à qual o sr. se refere, o beneficiário da renda mínima não deixará de recebê-la, mesmo se arrumar um emprego modesto.
Parijs - Exatamente. O que muda, então, é o estatuto do programa. Não se trata mais, apenas, de um mecanismo que impede a miserabilização. O programa passa a ser, também, uma espécie de "rede" de proteção, abaixo da qual o cidadão pobre não pode de maneira nenhuma cair.
Folha - Com isso, também não passaria a existir um desestímulo ao crescimento do mercado de trabalho informal?
Parijs - Com certeza. O beneficiário da renda mínima deixa de ter objetivamente qualquer motivo para não declarar uma atividade profissional que lhe dê qualquer remuneração.

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