São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 1996
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Índio cresce na base do sofrimento

ANDRÉ MUGGIATI
DA AGÊNCIA FOLHA, EM TABATINGA

Os índios saterés-maués têm de se submeter à mordida dolorida de grandes formigas pretas, chamadas de tucandeiras, para provar para toda a tribo que já são homens.
O ritual, que marca a passagem para a idade adulta, é chamado de "festa da tucandeira".
Os garotos entre 10 e 15 anos vestem uma luva trançada de palha com dezenas de tucandeiras, famosas pela ferroada dolorida.
"Quando a gente mete a mão na luva da tucandeira parece que está pegando fogo, como se estivesse em um braseiro", diz o índio sateré-maué Manelito Sateré, 25, que passou pelo ritual quando tinha 13 anos de idade.
Mordidas diárias em 20 dias
Os índios dançam com as luvas durante cerca de quatro horas a cada dia de ritual. Ao todo são duas etapas de dez dias consecutivos, intercaladas por um descanso de dez dias. Os rituais ocorrem todos os anos entre agosto e outubro.
"Quando a gente tira a luva, o braço está suando sangue", diz Manelito Sateré, que vive na aldeia Andirá, em Barreirinha (a cerca de 400 km a leste de Manaus).
"Antes de pôr a mão na luva pela primeira vez, a gente sente um frio na barriga, parecido com a primeira vez em que vai transar com uma mulher", diz Sateré.
Segundo ele, as mordidas das tucandeiras fazem do menino um homem. É importante que eles sejam virgens ao pôr a mão na luva pela primeira vez. "Dói menos", diz Sateré.
Segundo o administrador da Funai em Parintins (390 km a leste de Manaus), Lúcio Ferreira Menezes, os meninos não são obrigados a participar do ritual.
"Quando eles vêem os outros pondo a mão na luva, acabam tendo vontade de colocar também e provar que já são adultos", afirma.
'Macho' não foge da luva
Já Sateré diz que quem não se submete ao ritual é considerado menos homens e tem dificuldade em conseguir namorada.
Adultos também gostam de colocar a mão na luva durante a festa. Demonstram sua força para o restante da tribo.
"As mulheres também preferem os homens que colocam as luvas e não choram", afirma Sateré.
"Durante essas quatro horas você chora, você grita, você sofre", diz Menezes, que também é índio sateré-maué e colocou a mão na luva pela primeira vez aos 12 anos.
Nos dias de ritual e durante o intervalo, os índios só podem comer farinha seca e formigas torradas.
"Uma pessoa com 60, 70 quilos, após o final das festas está com, no máximo, 50", conta Menezes.
Os saterés-maués são cerca de 6.000 índios. Vivem ao leste do Amazonas e se concentram nos municípios de Parintins, Maués e Barreirinha.
Detalhes do ritual
Todo o ritual é preparado pelo pajé. Primeiro, ele adormece as tucandeiras com um líquido preparado com caju.
Adormecidas, dezenas de formigas são colocadas presas nos buracos da luva, com os ferrões virados para dentro.
O pajé dá então uma baforada de tabaco para acordar as formigas e coloca a luva no menino.
Consolo das mulheres
A luva é trançada de tal forma que, se o garoto tentar arrancar, fica ainda mais apertada.
O pajé canta os cantos sagrados do ritual, e todos os homens da aldeia dançam durante quatro horas seguidas.
Terminada a dança, os homens, com o corpo mole devido às mordidas, são tratados por suas namoradas e mães. É o momento de consolo.

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