São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 1996
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Erros divinos

DARCY RIBEIRO

Não falo dos enganos óbvios de que já tratei copiosamente. Como esse espetáculo diário do nascer e do pôr-do-sol, que é pura demagogia de Deus. Foram precisos séculos para descobrir que é a Terra que dá umas voltinhas. Não existem amanheceres e entardeceres. Nem falo que são os ricos que socorrem os pobres, dão um empreguinho, um dinheirinho, outra obviedade divina muito bem disfarçada. Nem mesmo falo do óbvio, que é a inferioridade dos negros, que está na cara, mas é um engano. São nossos iguais e até melhorzinhos que os brancos em algumas coisas. Estão é sendo inferiorizados há séculos. Brutalmente. Também não me refiro à tolice de achar que nosso sistema educacional péssimo, só comparável ao de Honduras, seja um fracasso das classes dominantes. Ao contrário, ele é uma façanha porque os ricos brasileiros sempre quiseram um povo xucro.
Falo é de erros mesmo do Senhor meu Deus, que acabo de descobrir com o câncer. Ao menos para isso ele serviu. O primeiro erro divino foi juntar, no mesmo encanamento, porra e urina, o que nenhum engenheiro faria. Só podia dar galho. Essa é a razão pela qual a maioria dos homens tem câncer de próstata. Até eu.
Outro erro que descobri ontem, tão absurdo que me obriga a vir dizer aqui, para informar urgentemente a todos os meus leitores, é que a coluna vertebral, toda óssea, com um oco que vai da nuca ao cóccix, está vazia. A minha e a sua também! Deus pôs o feixe de nervos, que é a medula, dentro de um tubo plástico por fora da coluna. Cuidado, qualquer facada pode cortá-la e deixar você paralítico. Tão paralítico que não poderá nem comer e descomer. Não é um erro absurdo? Eu não me consolo com isso. Aquele buracão, estrategicamente colocado, ficar vazio e a pobre da medula exposta do lado de fora, nas costas do distinto.
Sei ver e reconhecer, às vezes, as maravilhas da criação. Algumas delas tão perfeitas que me intrigam. Outras, nem tanto. Foi besteira grossa nos tirar o rabo elegantíssimo que só os macacos têm. Seria da maior utilidade. A professora pendurada no lustre da sala, dando aulas para os guris, que têm numa mão um livro, na outra um lápis, no pé uma borracha e no rabo não sei o quê.
O que mais atiça minha curiosidade é saber por que Deus pôs tanta perfeição em alguns bichos, como as pulgas. Você já examinou uma delas? Se não examinou, faça-o urgentemente. São muito mais bem feitas e bem acabadas que nós. Têm sua casa portátil, que é uma carapaça ebúrnea (que é mesmo isso?). Suas pernas de saltar, prodigiosas, de ganhar qualquer olimpíada. Sua aparelhagem de sucção de sangue que é uma maravilha. Para elas, é claro.
Eu achava, com todo direito de achar, que, ao alcançar os 70 anos, um homem informado como eu já tivesse visto tudo. E me vem essa novidade impensável do buraco vazio e da medula exposta. Não é demais?

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