São Paulo, terça-feira, 22 de outubro de 1996
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O militante imaginário não quer comer um bom bife

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Eu já fui um "militante imaginário". Ainda sou, de certo modo. O que é um "militante imaginário"? Essa expressão é do Gianotti, falando de filósofos que o criticam por ele apoiar FHC. O militante imaginário ou "MI" é encontrado em universidades, igrejas, conventos, jornais, bares. Ele é uma invenção portuguesa, não da piada, mas da colônia.
O militante imaginário é uma espécie de bacharel de Cananéia da alma, é o bacharel da revolução. Ele estava na Inconfidência Mineira, ele estava ali entre Claudio Manuel da Costa e Gonzaga, ele estava em muitos liberais abolicionistas.
O militante imaginário é um revolucionário que não faz nada pelo bem do povo, nem a si mesmo. Ele se julga em ação, só que não se mexe. A revolução do imaginário é uma coisa vaga, uma alegoria de belezas e heroísmos, um futuro cantante de seres irreais, um sonho contra a morte, uma espécie de happy end político para a vida.
O militante imaginário (MI) é o revolucionário que não gosta de acordar cedo. É muito chato ir para a porta da fábrica panfletar. O MI também não gosta de nenhuma revolução real. A revolução do imaginário militante é uma herança modernista que ficou, depois da beleza de Che Guevara, da coragem de barbudos de Cuba, dos panteras negras, dos vietcongs.
Nós, no Brasil, ibéricos que somos, amantes do gesto puro e abstrato, das tiradas literárias, inventamos a "revolução cordial". Nada de helicópteros no rio Mekong, nada de porrada nos "ghetos", nada de florestas cubanas, nada de Araguaias, nada de tiros na nuca nas ruas de São Paulo.
Isso não quer dizer que os MIs sejam covardes. Não. É que eles gostam de trabalhar no teórico. A realidade atrapalha, com suas vielas, esgotos e becos sem saída. "A realidade é chata, mas, apesar de tudo, ainda é o único lugar onde se pode comer um bom filé" (Woody Allen). O militante imaginário não quer comer um bom filé. Seu mundo é o texto.
Patrulhas e lua-de-mel O militante imaginário é uma variante do "patrulheiro ideológico", invenção do Carlos Diegues. Só que o patrulheiro vigia a liberdade dos outros. O militante imaginário só pensa em si. Para ele, todos somos burgueses, reacionários, ingênuos. Mas ele não nos denuncia como o "patrulheiro". Ele nem nos dá a esmola de uma crítica.
O militante imaginário vive em lua-de-mel consigo mesmo. Porque ele é a verdade de um tempo, mesmo que ele se autocritique, mesmo que ele anuncie suas dúvidas teóricas com a certeza dos profetas. Ele é uma espécie de herói masoquista, um orgulhoso da impotência, ele tem o charme invencível do derrotado que não desiste.
O militante imaginário é auto-suficiente, ele é o povo de si mesmo. Ele é uma espécie de "guerreiro da luz" político do Paulo Coelho; é mais um herói existencial. Quanto mais erro houver, mais comprovação de seu sucesso; quanto mais derrota, mais brilha sua solidão.
Para ele, a "práxis" é chata. A vitória é fracasso e o fracasso, vitória. O revolucionário imaginário aguenta qualquer coisa, menos o próprio sucesso. A vitória seria o fim do sonho e o início de um inferno administrativo.
O militante imaginário detesta contas, balanços, safras de grãos, estatísticas, tudo que interessa à direita concreta. Por isso, ela ganha sempre.
O crime de FHC Para o MI, o crime terrível de FHC foi ter se metido no mundo real. Jamais será perdoado pela USP. O MI, seja ele artista, filósofo ou apenas essa coisa difusa chamada "homem de bem", odeia qualquer descida ao mundo da verdade, pois isso pode ser fatal para a integridade de seus ideais. Quanto mais a realidade os nega, mais um novo tipo de progressismo tem de ser criado, tão puro teoricamente que não corra o risco de ser jamais testado.
Assim, o corpo do militante imaginário segrega um santo óleo que o protege contra o mundo. E então a política vira uma estética da personalidade. O militante imaginário tem uma espécie de saudade. Saudade de um mundo que já foi bom. Só que ninguém sabe dizer quando o mundo foi bom.
Quando o mundo foi bom? Durante a guerra de 14, no stalinismo, nos anos 40, quando? O MI tem saudade de um tempo quando se achava que o mundo "poderia" ser bom; é a saudade de uma saudade. De certa forma, estamos hoje muito mais perto da verdade do que antes.
Hoje uma práxis política tem de ser de "erro e tentativa". Uma luta humilde, parcial, ridícula, errando e voltando atrás, sem recompensas metafísicas, uma luta democrática pela melhoria da vida social. Uma práxis experimental, uma razão buscada nas coisas, um iluminismo de mercado, uma busca de resultados.
Mas, isso o MI não quer. Ele quer é o absoluto, a vida eterna. Ele acha que a vida é teoria. O MI acha que o socialismo não rolou porque foi mal interpretado pela "nomenklatura", foi um deslize teórico. Se tivessem lido Lukacs direito... O MI odeia meios; só gosta de fins. Os meios são chatos, dão trabalho.
Ultimamente, o militante imaginário anda mal. Todas as evidências de suas ilusões estão caindo. Aí, o MI produz mais fé. Quanto mais fracasso, mais fé. O MI acha que os homens se dividem em esquerda e direita. Ele não sabe que, em buracos mais embaixo, há outras categorias que determinam essas: esquizofrênicos e paranóicos, positivos e negativos, autoritários e democratas, formalistas e conteudistas.
O militante imaginário não tem o fel do "chapa negra", nem o rancor do patrulheiro. Ele é, em geral, romântico, acha que desejar o bem do povo basta, mesmo que o "povo" nem saiba disso. E vive seu sonho, torcendo pelo bem, como se torce pelo Flamengo. No fundo, o MI é um homem bom. Mas como atrapalha...

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