São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 1996
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Pobreza made in globalização

MARIA ANGÉLICA BORGES; JOÃO ILDEBRANDO BOCCHI

MARIA ANGÉLICA BORGES
e JOÃO ILDEBRANDO BOCCHI
A chegada alucinada dos produtos importados, associada a um câmbio valorizado, altas taxas de juros e crédito apertado, ajudou a transformar uma parcela do parque industrial brasileiro em importador e maquiador de mercadorias.
Nosso capitalismo industrial -que se viabilizou como um processo retardatário em relação aos países do capitalismo clássico e prussiano dos séculos 18 e 19- viveu e vive uma realidade de atraso estrutural que, nos dias atuais, transparece de forma alarmante dentro do discurso da globalização, palavra de ordem que ajudou a construir a hegemonia Collor e perdura na era Fernando Henrique Cardoso.
Enquanto as transformações produtivas e as mudanças organizacionais conduzem rapidamente à virtual liquidação de importantes setores da indústria nacional, o presidente se limita a produzir análises sociológicas sobre o vértice inexorável da globalização.
A venda da Metal Leve -que, com uma política de altos investimentos em tecnologia, estabeleceu-se até nos EUA- para a norte-americana Mahle Inc. é o exemplo mais recente da desnacionalização pela qual passa a indústria brasileira.
Estranha modernidade a nossa. Ao aplicarmos alíquotas de 35% ou 70% às importações de automóveis, ao mesmo tempo em que taxamos em 2% as importações de autopeças, protegemos generosamente as grandes montadoras multinacionais e jogamos as empresas nacionais de autopeças numa competição desigual no mercado internacional.
Nos jactamos de uma produção de automóveis da ordem de 2 milhões de unidades, em que participamos tão somente com a mão-de-obra-força e não com a mão-de-obra inteligente, conforme afirmou Jean Lojkine.
Com uma produção de automóveis maior que a da Itália, nós, caipiras brasileiros, jamais poderemos sonhar com a ousadia de uma indústria automobilística própria, à moda coreana.
Aqueles que esboçam uma "loucura dessas" são logo enxovalhados como jurássicos pelos pós-modernos globalizados.
Assim como em outros países da América Latina, num primeiro momento, podemos nos iludir com índices de crescimento ou de estabilidade de preços.
Mas um olhar mais atento pode indicar que não se trata de um real desenvolvimento. As ilusões caem por terra, temperadas com os tristes ingredientes dos altos índices de desemprego e da desindustrialização.
A abertura econômica, realizada na lógica do capital internacional e não calcada nos interesses da maioria da população, aumentou de forma vertiginosa os índices de penúria social.
Lógica perversa essa. Exige desmontar um Estado previdenciário que nem foi construído. Exige a inação diante da eliminação de postos de trabalho industrial, em um país que nunca resolveu problemas estruturais de emprego.
A tímida reação do capital nacional não teve continuidade, revelando o caráter conciliador das nossas classes dominantes, caudatárias atávicas do capital internacional.
Não há defensores de um amplo e urgente programa nacional de desenvolvimento, que nos permita produzir mais e melhor para os mercados interno e externo.
Diante do mesmo processo, outros países resistiram e resistem. Dançam a globalização sem sucumbir tão facilmente à sua lógica excludente. Adotam salvaguardas e protegem setores significativos da sua riqueza nacional.
No nosso caso, não encontramos exemplos de resistência. Capitula-se. Não se buscam soluções mais favoráveis para um país que, dentro do Terceiro Mundo, mostrou ser uma das possibilidades mais promissoras de industrialização.
Sem subestimar as imensas dificuldades dos países atrasados em relação aos países hegemônicos, e reconhecendo as contradições nesse movimento desigual e combinado, é necessário enfatizar que a atual política econômica -ressaltando a vertente industrial- em nada contribui para alterar o desarranjo estrutural da economia nacional.
E quem paga a conta? Mais uma vez, uma população excluída, para a qual a globalização é sinônimo não só de dificuldades presentes, mas da provável exclusão futura de seus filhos e netos.
Quanto à nossa ex-burguesia industrial, restará sempre o velho papel de burguesia compradora, uma especulaçãozinha na Bolsa de Futuros ou, quem sabe, uma master franquia de um fast food qualquer.

Maria Angélica Borges, 44, é professora de economia e diretora do Centro de Ciências Jurídicas, Econômicas e Administrativas da PUC-SP.

João Ildebrando Bocchi, 44, é professor de economia brasileira do Departamento de Economia da PUC-SP.

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