São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 1996
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A mulher ideal

MOACYR SCLIAR

O marquês de Sade estava no Inferno (onde mais?) assistindo TV na sala reservada aos executivos. Mas o seu ar era de perplexidade: não estava entendendo nada do noticiário. Finalmente, chamou um demônio, que estava por ali varrendo o chão:
- Você, que está mais familiarizado com essas coisas, me explique: que história é essa que estão contando sobre esse tal de Tiririca?
O diabo coçou os chifres (o que mais poderia coçar?), pensou um pouco e explicou:
- É o seguinte: o Tiririca é um cantor muito popular no Brasil. Aí ele fez uma música chamada "Veja os Cabelos Dela", que não pegou bem.
- Por quê?
- Porque, senhor marquês, ele fala de uma "nega", cujos cabelos parecem "bombril de arear panela" e que "fede de lascar": é uma "bicha fedorenta" que "fede mais que um gambá". E lá na Terra, o senhor sabe, isso é considerado agressão.
- É mesmo? -O marquês estava impressionado. No meu tempo nunca usei dessas agressões. Só chicote, essas coisas assim. O pessoal está progredindo. Mas diga: o que aconteceu depois?
- Aconteceu que o Tiririca está sendo processado por racismo. E agora ele apresentou sua defesa.
- Dizendo o quê?
- Dizendo que a música foi inspirada na mulher dele, que estava no show em que foi apresentada a música. Segundo o advogado do Tiririca, a mulher fede mesmo.
- Que coisa. E a mulher, o que falou?
- Pelo jeito, não falou nada.
- Como? -Sade, assombrado. O marido diz que ela fede -e ela não diz nada?
- Pois é.
E como o ilustre hóspede nada dissesse, voltou à vassoura, porque, tirando certas músicas populares, há pouca coisa menos limpa que chão de Inferno. Quanto ao marquês de Sade, permanecia em silêncio. Mas não era difícil adivinhar no que pensava. Uma mulher assim, era o que ele pensava, era o ideal do masoquismo. O sonho de qualquer sádico, em letra ou em música.

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