São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 1996
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Reconstituição _ 1

PEDRO SIMON

"Da união deles dois, ficou resolvida a questão. E foi proclamada a escravidão." "Samba do crioulo doido", de Stanislaw Ponte Preta
Não há como negar: o Congresso Nacional vive um de seus momentos mais sensíveis, em termos de legitimidade popular. É bem verdade que os ventos da democracia, que derrubaram todas as barreiras que se interpunham entre o público e o seu poder constituído, parecem ter sido mais fortes pelos lados do Legislativo. Aqui não há porta-voz. O Congresso Nacional se comunica com a população por meio da própria imprensa.
O Congresso Nacional não é uma instituição monolítica. Ao contrário, ele é a verdadeira síntese de um país de contrastes. As mais diferentes correntes de opinião se expressam por meio de partidos políticos. Era de esperar que a legitimidade dos partidos políticos que dão conformação ao Congresso Nacional fosse a continuidade e a consequência do voto livre, secreto e democrático. Mas não é. Os partidos, segundo pesquisas recentes, não têm prestígio para três em cada quatro brasileiros, situação pior, até mesmo, que a dos clubes de futebol.
Esse mesmo Congresso, hoje visto apenas pelo retrovisor da avaliação popular, já propiciou momentos memoráveis na história política recente do país. Quem não se lembra dos debates que deram origem à Constituição de 1988? Os corredores e os salões do Congresso Nacional se transformaram em ruas e praças, e as tribunas, nos coretos que identificam o lugar central, o centro de convergência de idéias e de expectativas. Talvez fosse aquele o momento mais adequado para uma ampla reforma política e partidária, fundamentada no contraditório do debate de idéias que emergiram da própria população. Perdeu-se, portanto, a oportunidade de rediscutir a representação partidária, quando o Congresso se transfigurava na face do próprio país.
É por isso que, talvez pelo receio da volta a um passado tão perverso e tão recente, a Constituição de 1988 seja tão abrangente, e matérias que poderiam ser caracterizadas como infraconstitucionais transformaram-se em preceitos. Além disso, mais de 200 artigos da Constituição de 1988 ainda não foram regulamentados. É que, quando os assuntos considerados mais polêmicos geravam risco do chamado "buraco negro", recorria-se ao artifício de remetê-los à legislação subsidiária e à revisão constitucional.
O que os constituintes não previram é que tal revisão coincidiria com as últimas luzes dos mandatos parlamentares. Também não poderiam prever que se trataria de um dos períodos mais conturbados da história política brasileira, com o "impeachment" do presidente e a cassação de parlamentares revestidos de poderes constituintes. Daí o fiasco da revisão que se propôs ocorrer em 1993.
Fracassada a revisão, as mudanças constitucionais passaram a ser discutidas ao sabor de propostas de emendas apresentadas, quase sempre, segundo interesses momentâneos do Poder Executivo ou deste ou daquele parlamentar, não raras vezes movido por interesses de grupos de pressão mais bem organizados.
A essa miscelânea de apresentação de emendas e à falta de regulamentação de temas considerados relevantes, soma-se a mixórdia das medidas provisórias. O que deveria ser justificado pela relevância e pela urgência tornou-se instrumento de administração do dia-a-dia, já ultrapassando 1.500 edições, isso sem considerar as reedições sucessivas e mensais, que chegam a quatro dezenas.
Triste constatação. A Constituição "cidadã" gerou um emaranhado de leis que não se complementam e de medidas que não são provisórias, à mercê de filiações partidárias que, muitas vezes, não se atrelam a idéias, mas a barganhas corriqueiras que denigrem os verdadeiros postulados franciscanos, tudo isso em nome da fiel observância à "lei de Gérson".
Esse é o quadro político partidário brasileiro, pincelado, aqui, em cores cinzentas. E é exatamente ele que dá moldura à proposta de emenda constitucional nº 50/96, que apresentei no último dia 10 de outubro. Ouso considerar que não se trata de mais uma emenda. Ao contrário, ela se antepõe ao varejo das emendas constitucionais e às medidas provisórias que, na verdade, preenchem o vácuo das regulamentações reclamadas pela Constituição de 1988. Com ela, procuro resgatar a revisão constitucional abortada em 1993. Mais do que isso: as idéias que serão debatidas e que darão corpo a um texto constitucional mais condizente com a realidade atual e com o projeto que se deseja para o país serão, também, o suporte necessário à consolidação de agremiações partidárias verdadeiramente representativas do pensamento dos diferentes segmentos da população.
Preocupa-me, portanto, a questão da legitimidade, tanto do novo texto constitucional quanto dos parlamentares que irão aprová-lo. O plebiscito e o referendo serão os dispositivos utilizados para legitimar os novos parlamentares, eleitos nas próximas eleições, e a nova Carta, após sua aprovação, em votação unicameral.
Aos partidos políticos caberá, verdadeiramente, a legitimidade das urnas, porque eles emergirão de idéias a serem defendidas pelos respectivos candidatos. Se eleitos, manter-se-ão coesos aos princípios doutrinários e ao programa partidário. Se desfiliados, perderão o mandato, pois este passará a pertencer ao partido. Mas esse é um assunto que deverá ser detalhado neste mesmo espaço nos próximos dias.

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