São Paulo, sábado, 26 de outubro de 1996
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O esqueleto do Vietnã faz barulho no armário

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma expressão de muito uso na língua inglesa é a do "skeleton in the closet", como dizem os americanos, ou "in the cupboard", como preferem os britânicos. A idéia fundamental do dito é que está tudo em ordem na vida e na casa das pessoas, tudo arrumado, encerado, polido.
Mas não abram, por favor, aquele "closet", aquele armário, o socavão onde se esconde, a sete chaves, o esqueleto. Porque houve, um dia, um crime, e não se conseguiu tirar da casa o esqueleto. Que fique ele lá no seu "closet", no seu armário. Pode-se até jogar fora a chave do dito armário, ou, melhor ainda, esquecer que existe, nas entranhas do porão, o próprio armário.
Na história dos países, como na das famílias, há em geral mais de um esqueleto enfiado em mais de um armário, e, por muito que não se queira acreditar nessas histórias, eles de repente se movem, como se quisessem perturbar o elegante sossego da nação inteira, ou de toda a família.
A Alemanha nazista, por exemplo, criou para o aprumado, escovado, discreto povo alemão uma dança macabra que promete não acabar nunca. Um dia (16 de outubro de 1946, para ser exato) dez dos condenados pelo Tribunal de Nuremberg foram enforcados.
Ora, não há "closet" nem armário com capacidade suficiente para manter quietas tantas ossadas inauguradas naquele mesmo dia de meio século atrás.
O mais nefando de todos os crimes, o do Holocausto, jamais deixará de perturbar com um chocalhar de ossos mesmo reuniões as mais caseiras, nos ambientes familiares os mais simples e severos, entre as leves porcelanas de Melssen e os pesados móveis Biedermeier.
No time dos países que lideram o mundo, os Estados Unidos seriam, eu diria, os mais cuidadosos em evitar dentro de casa esqueletos trancados em armários.
Suas matanças de índios, seus avanços sem cerimônia pelas terras mexicanas, sua guerra de Cuba para substituir na ilha o domínio espanhol, sua orgulhosa Doutrina de Monroe -tudo isso os americanos deram um jeito de fazer acontecer como se fosse o roteiro de um filme épico, alegre, os corneteiros da cavalaria sempre tocando no compasso exato e entrando em cena na hora certa.
Isso para nem falar nas duas intervenções definitivas das armas americanas nas duas guerras mundiais. A guerra de 1939-1945, aliás, os Estados Unidos a encerraram com a obra-prima de reconstrução que foi o Plano Marshall, que acabou com qualquer esperança socialista e impediu que, eventualmente, algum russo chegasse à Lua antes de Neil Armstrong.
Mas apesar de tudo isso, de uma história dirigida por Cecil B. de Mille, coberta por Randolph Hearst, cantada por Frank Sinatra, sempre haveria de sobrar, no fundo do mais esquecido porão dessa Xanadu exemplar, o "closet" e, dentro dele, o esqueleto da guerra inesquecível.
Ela, a guerra do Vietnã, voltou com grande força à cena desde o ano passado, quando Robert S. McNamara publicou seu "In Retrospect", e criou ainda mais força agora, com a publicação de um livro com um longo título: "Os Vivos e os Mortos: Robert McNamara e Cinco Vidas de uma Guerra Perdida". O autor é Paul Hendrickson, um jornalista que há muito estuda a vida do seu agora biografado.
O que torna perturbadora a carreira de McNamara -que foi o secretário de Defesa dos Estados Unidos durante a guerra do Vietnã- é que, ainda que ele não chegue a lembrar nenhum dos monstros nazistas de Nuremberg, acaba por inquietar quase tanto.
McNamara não se limitou a crer que a força tecnológica é a que sempre vence: continuou acreditando nisso mesmo quando, como no Vietnã, ela não venceu. Tornou-se uma espécie de Santo Agostinho da tecnologia: ainda que fosse absurdo era nela que acreditava.
Pode-se dizer hoje em dia que muitos dos mortos e prejuízos foram devidos à excepcional inteligência de McNamara, estrela da Universidade da Califórnia e da Harvard Business School.
Em 1960 foi ele o primeiro presidente da Companhia Ford que não tinha o nome de Ford. Mas pouco tempo ficou nesse posto de honra e glória da tecnologia americana, pois foi convocado pelo presidente Kennedy para o cargo de secretário de Defesa.
Reformulou o Pentágono, modernizou tudo, tornou os Estados Unidos invencíveis. E começou, em breve, a perder a guerra, que nos campos de batalha era conduzida pelo pobre general Westmoreland.
Até aí, nada de tão novo assim. Homens de excepcional inteligência como McNamara se enganaram antes. O grave, no caso dele, é que aí pela metade da guerra convenceu-se de que os Estados Unidos não a ganhariam, que os vietnamitas eram, digamos, incapazes de perceber que deviam perdê-la. E -aqui seu pecado- McNamara não entregou os pontos nem a si mesmo, nem ao seu próprio raciocínio.
Os americanos não suportavam mais a guerra, a ponto de um jovem religioso, um "quaker", imolar-se a si mesmo, como um oriental, nos jardins do Pentágono. McNamara ficou abalado, sem dúvida, mas, apesar de não crer mais na vitória, jamais imaginou que não surgisse uma solução favorável aos Estados Unidos, naquela luta quase ridícula contra pequenos seres amarelos embuçados na floresta.
Quando deixou em 1968 o Pentágono, McNamara não entrou para nenhum mosteiro. Foi presidir o Banco Mundial, enquanto outros americanos, menos brilhantes do que ele, tocavam para a frente, como Deus era servido, a guerra interminável do Vietnã.
Ou trancavam a dita guerra, como acabaram fazendo em 1975, num "closet".
Li críticas, mas não o livro de Hendrickson e não sei, por isso, se ele faz justiça à administração de McNamara à frente do Banco Mundial. Ele foi presidente do banco durante 13 anos e parece que dedicou um interesse todo especial aos países do Terceiro Mundo. Como o Vietnã, por exemplo.

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