São Paulo, sábado, 26 de outubro de 1996
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O continente e a ilha

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Em texto, e depois num "Roda Viva", Marcelo Coelho me acusou de rabugento. Essa é a impressão que lhe causo (a ele e a muita gente), sobretudo nas crônicas em que trato de assuntos políticos.
Realmente, política me bota fora do sério. No seminário aprendi a máxima: "ad majora natus" -nascemos para causas maiores. É com irritação que trato dos fatos políticos, sejam eles bons, maus ou mais ou menos.
Nenhum ressentimento pessoal. Em 1964, Tancredo Neves deu-se ao trabalho de ir ao jornal onde trabalhava e me convidou para a chapa dos deputados federais do Rio. Ele garantia que eu poderia eleger uns cinco nas minhas sobras.
O problema não era acreditar naquela amável previsão. A questão é que entrar na política, ainda que do lado que na época me parecia certo, seria uma violentação ao meu gosto: "ad majora natus" foi o que respondi a Tancredo, que ficou meu amigo daí em diante. Ajudou-me a escrever um livro sobre Vargas e outro sobre JK. No fundo, ele também nascera para coisas maiores, mas cometera o pecado original de gostar da política.
Na antevéspera de sua posse na Presidência, convidou-me para um jantar íntimo em sua casa. Avisei a dona Antônia que não poderia ir. Mais tarde, Mauro Salles me avisou que o jantar fora adiado. O resto é sabido.
De lá para cá, com a ausência de um fator ideológico (a ditadura acabara), a má vontade para com o fato político foi aumentando. Como disse o Marcelo Coelho, fiquei rabugento -no que obrei bem.
Machado de Assis também se vangloriava de ser rabugento. Jonathan Swift, o escritor de língua inglesa que mais aprecio, era outro rabugento, com a agravante de ser irlandês, como Joyce e Shaw. Os irlandeses costumam ser rabugentos. As exceções são Oscar Wilde e Mila, a mais que amada "irish red setter", cuja saudade é a ilha de doçura onde descanso da minha fadiga.

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