São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
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Dupla em movimento

SUZANA CAMARÁ
FOTOS KLAUS MITTELDORF

"Nunca quisemos ser especialistas em nada. Nós gostamos é de dar nossa visão peculiar a coisas diversas, seja em textos, livros, casas, prédios, exposições, cinema, em qualquer negócio"
"Achamos que havia chegado a hora de explorar a vocação que São Paulo tem de ser a pior metrópole do mundo"
O projeto arquitetônico mais esperado de São Paulo, o do Hotel Fasano, prestes a começar a ser erguido numa travessa dos Jardins, está trancado a sete chaves.
A pedido do cliente, a família Fasano, proprietária do sofisticado restaurante paulistano que leva seu sobrenome, o mistério sobre a maioria dos detalhes de suas 150 pranchas ainda vai continuar.
Entretanto, mesmo antes de se materializar, tal projeto está fadado a ser um dos poucos pelos quais a cidade vai se vangloriar.
O por quê dessa dedução? Ora, foram das cabeças, pranchetas e aparelhos de fax dos arquitetos Isay Weinfeld e Marcio Kogan que saiu toda a concepção do futuro Hotel Fasano. Precisa dizer mais?
Talvez não aos que assistiram ao longa-metragem "Fogo e Paixão" (lançado em 88), repararam na cenografia da peça "Tamara" (encenada em 92 num casarão do centro paulistano), contemplaram a mostra "Arquitetura e Humor" (instalada de 7 de dezembro de 95 a 11 de fevereiro deste ano no Museu da Casa Brasileira) ou conhecem o edifício Metrópolis, no Morumbi, todos assinados pela dupla Weinfeld-Kogan.
Mesmo para quem já tenha batido os olhos em algum trabalho dessa parceria, nunca soa como demais relembrar das façanhas arquitetadas por ela. E também constatar, com um meio sorriso no rosto, que tal dupla é formada por dois dos arquitetos menos arquitetos do planeta.
Especialistas em nada
"Nunca quisemos ser especialistas em nada. Nós gostamos é de dar nossa visão peculiar a coisas diversas, seja em textos, livros, casas, prédios, exposições, cinema, em qualquer negócio", dizem Weinfeld, 44, e Kogan, também 44, como que em uníssono.
A descoberta dessa verdade, comum aos dois, foi revelada num papo infinito sobre o filme "Persona", do cineasta Ingmar Bergman, durante a época de cursinho pré-vestibular.
Ao começarem a colocar seus delírios intimistas em prática, já como colegas na faculdade de arquitetura do Mackenzie, Weinfeld e Kogan de cara alcançaram o resultado pretendido: quase levaram os professores da turma de 70 a 75 à loucura.
Por conta da originalidade do ponto de vista que demonstravam ter sobre arquitetura e urbanismo, só ganhavam como notas, zero ou dez.
"É que nós éramos saídos de um filme de Bergman e sabíamos disso. Quando nos descobrimos perdidos na multidão, foi como um achado. Daí, deduzimos que talvez não fôssemos os únicos malucos do mundo", confessa Kogan que, por nunca ter sido simpatizante de drogas (tanto quanto seu parceiro Weinfeld), acredita ser tal qual o personagem Obelix. "Quando bebê, devo ter caído dentro de uma bacia cheia de poção alucinógena", se justifica.
Conclusão: dada a inexistência de medo de serem vistos como pirados, decidiram botar suas doidices pra fora, de tudo quanto fosse jeito.
Com uma câmera Canon 1218 na mão, milhares de simbologias bergmanianas na ponta da língua e um humor jaquestatiano avesso à juventude psicodélica dos anos 70, eles arrasaram nos festivais de filmes Super-8. Isso, numa época em que tal espécie de sétima arte levava multidões às salas de projeções especiais, tendo o maluco artista multimídia Andy Warhol como farol.
Absurdos, sinistros e repletos de visões ácidas sobre a civilização moderna, porém tecnicamente impecáveis, os filmes Super-8 dirigidos por eles viraram "cults" e -surpresa!- foram elogiadíssimos tanto pelo público como pela crítica cinematográfica de outrora.
Pudera. Em "Canon 1218 - Vida e Obra", por exemplo, o personagem era a própria câmera, que estrelava sua trajetória desde uma cena final óbvia, com direito a casal correndo e se abraçando na praia, até o momento de ser guardada em sua caixa. Censurar idéia tão surreal, ninguém se atreveria.
Apesar de testarem sem dó o limite da sanidade do público por várias vezes, durante a exibição dos 15 segundos de "Paixão Maldita", no último horário do último dia do Festival de Super-8 de 75, Weinfeld e Kogan chegaram a ter medo de apanhar da platéia. Nele, a atriz Dina Sfat aparece em close recebendo um convite em "off" para que desse uma força trabalhando como estrela de um filme de dois cineastas que não eram nada. Fim. O público delirou.
E quem apostou que a dupla iria se separar assim que recebesse o canudo da faculdade, acertou. Mas, principalmente, errou.
Independentemente juntos
Cada um estagiou em escritórios de arquitetura diferentes e, depois, montou seu próprio, independentemente -situação essa que permanece até hoje. Entretanto, nunca deixaram de projetar sonhos juntos.
Inclusive em cenas de suas vidas privadas. Em meados de 80, Weinfeld casou-se com a publicitária Lilian Citron. Mas o casal esperou uma semana pelo casório de Kogan com a artista plástica Raquel Kogan e, juntos, os quatro embarcaram para a Europa em lua-de-mel, percorrendo um roteiro cinematográfico criado a oito mãos.
Em 84, exploraram outra espécie de roteiro. Inscreveram seu curta primogênito no Festival de Gramado e arrebataram não só o grande prêmio, como também vários outros internacionais.
Baseado na orelha do livro "E o Vento Levou..." e tendo a atriz Mira Haar no papel da escritora da obra, Margareth Mitchell, o ator Patrício Bisso no de Scarlett O'Hara e um casarão colonial americano do bairro paulistano de Indianópolis no de Tara, "Idos com o Vento..." apresentou um acabamento tão impecável, um som tão perfeito e uma imagem tão segura, que não recebeu o Certificado de Produto Brasileiro do Concine -que alegou que a qualidade daquela obra não era compatível com a brasileira. Pode?
"Fogo e Paixão"
Só de desaforo, Weinfeld e Kogan partiram para a longa-metragem. Entre um projeto arquitetônico e outro, de cada um deles, escreveram e dirigiram a dois "Fogo e Paixão", o maior sucesso e único representante da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 87, além de um dos dez convidados do importantíssimo Festival de Filme de Humor de Vevey, na Suíça, daquele ano.
Quer saber como é a história de "Fogo e Paixão"? Um "patchwork" de situações ocorridas em uma excursão de ônibus por São Paulo, interpretadas por Carlos Moreno, Mira Haar e Cristina Mutarelli, mais Rita Lee, Fernandas Montenegro e Torres, Paulo Autran, Tônia Carrero, Regina Casé, Monique Evans e Zezé Macedo, entre outros.
Mais que uma comédia crítica e sutil, "Fogo e Paixão" é, assim como os demais trabalhos extra prancheta da dupla, uma ode avessa à arquitetura paulistana. Suas cenas, rodadas em São Paulo, focalizam cantos e fragmentos de construções conhecidíssimas, de um ângulo tão limpo, surpreendente e original, que a cidade atirada na tela chega a parecer ilusória. Fantástica.
A suprema preocupação com os detalhes estéticos do filme nada mais é que outra minúcia que salta aos olhos do espectador.
Nada em "Fogo e Paixão" surge em vão. Do brinco usado por cada atriz até o ônibus-personagem, prateado como o dos anos 50, passando pelo corte perfeito da grama da paisagem, tudo é confortável à vista, cabível no contexto, harmonioso.
A evidência que o conceito de beleza arquitetônica compreendido por Weinfeld e Kogan era o mesmo, extraordinário e realizável em qualquer tipo de obra não passou despercebido.
Ao comprarem um belíssimo terreno no Jardim Europa em 89, o megaempresário Marcio Goldfarb, dono da rede Lojas Marisa, e sua mulher Fanny, não titubearam. Entre escolher para bolar sua futura residência Isay Weinfeld (e suas influências arquitetônicas vindas dos arquitetos Lina Bo Bardi e Artacho Jurado) ou Marcio Kogan -abalado pelos trabalhos dos colegas de diploma Bernardo Fort-Brescia e Laurindo Spear, responsáveis pelos moderníssimos projetos erguidos em Miami nos anos 80-, os Goldfarb resolveram optar pelos dois. Fizaram o convite, e é claro que eles toparam.
Feita com inúmeros materiais brancos, de texturas e volumes diferentes, e construída com proporções simples e amplas, resgatadas de um tempo em que a arquitetura já foi bem mais generosa, essa casa é tida, desde que brotou, como uma das mais bacanas da cidade de São Paulo. Aliás, em 90 seus autores foram premiados pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) por conta dela.
Mas nem só no gosto de empresários atrevidos e associações arquitetas caíram os traços firmes e devaneados de Isay Weinfeld e Márcio Kogan.
Os três edifícios
Estão aí os edifícios Metrópolis, Atlântis e Paola que não deixam mentir. O Metrópolis, encomendado pelo cineasta Hector Babenco, é a união perfeita entre design e conforto.
Bancado por uma incorporação formada por uma pá de pessoas físicas e jurídicas criativas, todas a fim de morarem no Morumbi, mas longe de cantos chanfrados, tem toda a planta voltada para o conforto, a simplicidade, a divisão elegante de espaços e uma vista deslumbrante.
O Atlântis, o prédio de escritórios mais inteligente da alameda Ministro Rocha Azevedo, nos Jardins, também brilha por conta de sua pele. Toda de vidro e contornada pelas cores prata, ouro e branco.
Já o residencial Paola, em Higienópolis, prima pelos elementos naturais de sua construção com jeitão de casa. Possui requintes tais como proporções folgadas e detalhes perfeccionistas, como os dos rodapés, embutidos, e dos batentes, com ornamentos especiais.
Parece até piada, mas, ultimamente, quando não dividem louros ao assinarem projetos a quatro mãos, Weinfeld e Kogan dividem prêmios por suas produções independentes.
Autografada por Isay, o visual da loja Giovanna Baby do shopping Morumbi empatou, em 92, com o da loja de tecidos Larmod, nos Jardins, matutada por Márcio. Ambas racharam o prêmio anual IAB, da categoria arquitetura de lojas, naquele ano.
Também à custa de estripulias mais delirantes, como a criação do design da massa "Arame Farpado", para a marca italiana Barilla, da cenografia e direção de arte da luxuosíssima peça "Tamara", recheada de móveis, quadros e objetos de diversos antiquários (todos à venda), eles estremeceram as artes brasileiras no ano de 92.
Porém, a "Arquitetura e Humor", praticada no final do ano passado no Museu da Casa Brasileira, foi a que mais focalizou a porção humorística, simbólica e depurada dessa dupla dinâmica. "Seria o máximo virarmos carnavalesco e podermos projetar, de cabo a rabo, todo o desfile de uma escola de samba"
"Achamos que havia chegado a hora de explorar a vocação que São Paulo tem de ser a pior metrópole do mundo", brada Weinfeld que não se cansa de questionar a limpeza do rio Tietê.
"O que as pessoas vão apreciar ao navegarem pelas águas límpidas daquele rio?", esbraveja e responde: "Ser ecológico, todo mundo é, mas a reurbanização de São Paulo tinha de ser global".
Nasceu desse tipo de elucubração o espírito escrachado da mostra "Arquitetura e Humor": uma crítica urbana e social bem-humorada, onde 14 maquetes maravilhosas apresentavam -e justificavam por meio de um texto deliciosamente irônico- várias soluções bizarras para a cidade.
Entubar o rio Tietê transformando-o num esgotão aparente totalmente integrado com a estética da cidade, muni-lo com túnel de vidro equipado com esteiras rolantes, de forma a não perder a visão das favelas marginais, ou asfaltá-lo para esconder o problema de poluição de suas águas, tornando-o "navegável" por barcos sobre rodas foram algumas das pérolas inesquecíveis da mostra.
Hotel Fasano Foram também um motivo extra dentre todos o que levaram o "restaurateur" Rogério Fasano a convidar a dupla para assinar seu futuro hotel, mesmo sem saber que Weinfeld e Márcio têm o roteiro de um longa-metragem chamado "Palace Hotel" -um dos 40 do mundo a participar em 93 do Festival de Roterdã, na Holanda-, engavetado.
"Eu disse a eles: 'Sonhem'. E eles entenderam tudo", resume Rogério, mal sabendo que pela cidade já há quem jure por Deus que o Hotel Fasano vai exibir, entre várias bacanesas exclusivas, somente 50 suítes luxuosíssimas e uma fachada de cair o queixo. Toda de vidro, tijolos ingleses e, ainda por cima, decorada com um relógio tão extravagante quanto aquele do filme "King Kong".
A quem interessar possa, uma dica e tanto: arquitetos, cineastas e quiméricos por natureza e profissão, Isay Weinfeld (separado há mais de um ano e pai de Paulo, 14) e Márcio Kogan (casado há 16 anos e pai de Gabriel, 11), têm gerado outra idéia singular: "Seria o máximo virarmos carnavalescos", revela Weinfeld, "e podermos projetar, de cabo a rabo, todo o desfile de uma escola de samba".

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