São Paulo, quarta-feira, 30 de outubro de 1996
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Opções eleitorais em São Paulo

LÚCIO KOWARICK

"Uma via expressa exclui todos e tudo que não seja o automóvel". Tal afirmação é do sociólogo e professor Fernando Henrique Cardoso, em publicação do Cebrap em 1973, referida à gestão de Maluf na Prefeitura de São Paulo. Difíceis tempos. Auge do autoritarismo, do AI-5, da censura, da repressão, do "ame-o ou deixe-o", para ficar em só um jargão de um regime político que, fechado no seu despotismo, alardeava uma miragem econômica e escondia suas funestas consequências sociais. Tempos de alcaides nomeados, de construção do "minhocão".
Hoje é outro o cenário político. Apresenta uma contenda democrática, na qual despontam concepções opostas nas formas de gerir a metrópole. De um lado, Pitta, sombra e ventríloquo de Maluf, que, se reproduzir essa tradição elitista de governo, irá privilegiar as grandes obras de estreita finalidade social. O caso mais notável é o túnel Ayrton Senna: a um custo de R$ 750 milhões, a obra destina-se a 75 mil pessoas que diariamente por lá passam rapidamente em seus automóveis. Montante irrisório, quando se sabe que semelhante investimento em transporte público -corredores de ônibus, por exemplo- poderia redundar em benefício para 800 mil passageiros, que permanecem horas no seu deslocamento cotidiano, além de diminuir o congestionamento do trânsito. Poderiam também ser mencionadas as políticas de saúde, no mínimo duvidosas, os planos habitacionais de fachada, enquanto os favelados atingem o pico de quase 2 milhões de pessoas.
De outro lado, vale dizer que uma metrópole, com a complexidade e diversidade de interesses, supõe eficiência e eficácia, além de probidade e transparência administrativa. Caso se opte por uma São Paulo que, na medida do possível, seja uma cidade para todos, torna-se necessário ampliar as regras do jogo democrático, o que requer, pelo menos, negociação das divergências e maior participação nos processos decisórios. Isso está no cerne da candidatura Erundina.
Criar subprefeituras, com seus conselhos de representantes, é uma opção óbvia. A opção fundamental reside em algo que o governo petista esforçou-se em implementar nos anos 1989-92, e o malufismo, em destruir, no quadriênio imediatamente posterior: uma esfera pública não-estatal. Não apenas o orçamento participativo, que pouco caminhou na administração petista, ou o principismo utópico da democracia direta e dos ideais que bebem nas águas do conselhismo de caráter anarco-catacumbista. Foram, isto sim, além da reversão das prioridades, com ênfase nas áreas sociais, em detrimento das grandes obras viárias, as ricas experiências realizadas principalmente em torno de atividades ligadas a saúde, educação e construção de moradias. Atividades levadas adiante também por agentes não-governamentais, que tinham a responsabilidade de assegurar a qualidade das obras e dos serviços coletivos, sejam hospitais, escolas ou a autoconstrução por mutirão. Trata-se, enfim, de outra modalidade de gerir os interesses públicos e de novas formas de consolidar a cidadania. Trata-se também do empenho em diminuir a espoliação urbana, ao canalizar os investimentos para as regiões mais carentes e investir no transporte coletivo. De um lado, para enfrentar o alastramento dos problemas de trânsito; por outro, para fomentar políticas que procurem minorar os crescentes e complexos problemas ligados à violência.
A hipótese de Luiza Erundina ganhar a eleição depende basicamente de um arco de alianças, e nisso reside a possibilidade de viabilizar um governo de coalizão, que a candidata petista já alardeou o quanto pôde, superando a intransigência que caracterizou sua gestão. Várias lideranças do PMDB já manifestaram o seu apoio. No PSDB, Covas e Montoro já deram o seu aval, e assim fez também o ministro das Comunicações. O que está em jogo na sucessão não é nada desprezível: São Paulo, com seus 11 milhões de habitantes, afundada no desemprego e no achatamento salarial, na neurose das buzinas e dos congestionamentos, com vasto déficit habitacional e impregnada na violência que afeta o dia-a-dia dos seus habitantes, onde o medo e a desesperança despencam sobre grande parte dos habitantes, prefigurando para o século 21 uma cidade caótica, onde será temerário trabalhar e viver.
Utilizo mais uma vez o ensaio do sociólogo e professor Fernando Henrique, que se posiciona em relação à gestão Maluf dos anos 70: "Houve consideráveis investimentos (...) na remodelação de avenidas para construírem-se horríveis vias expressas, que dão vazão ao trânsito dos ricos (...), mas pouco foi feito para melhorar os transportes coletivos..." Tenho certeza de que o primeiro mandatário da República não renegou seus escritos anteriores, e que sua obra teve e tem importância nos destinos da política e da sociedade brasileiras. Se assim for, o eleitor Fernando Henrique dará ao seu voto em São Paulo o mesmo sentido e coerência que deu à sua vasta e brilhante obra, o que lhe valeu, entre outros títulos, o de professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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