São Paulo, quinta-feira, 31 de outubro de 1996
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Diretor recusa o tom panfletário do engajamento

EDUARDO SIMANTOB
DA PUBLIFOLHA

Após a queda do Muro de Berlim, as esquerdas, inclusive no cinema, até hoje procuram novos parâmetros para enquadrar seus ideais dentro da complexa realidade do mercado, da globalização etc. Mas o diretor inglês Ken Loach, 60, não fez concessões.
Loach poderia ser definido como o "último vermelho" do cinema. Seus filmes abraçam causas variadas, da luta pela emancipação da Irlanda do Norte ("Agenda Secreta") à guerra civil espanhola ("Terra e Liberdade"), passando pela situação da classe operária inglesa ("Riff Raff") e, agora, viajando até a Nicarágua sandinista com "A Canção de Carla".
Não é nada fácil, às bordas do século 21, mergulhar em temas anacrônicos como revoluções operárias ou camponesas, e ainda tomando partido. Mas essa orientação é justamente o que faz do cinema de Loach único na cena atual.
Muitos diretores oriundos do Primeiro Mundo já incorreram no erro de tentar abraçar causas distantes, resultando em filmes ora sem alma, ora de uma ingenuidade inverossímil.
Mas Loach tem consciência da distância que separa, como em "A Canção de Carla", Glasgow, na Escócia, da Nicarágua.
Metade do filme se passa em Glasgow, onde um motorista de ônibus (Robert Carlyle) se apaixona por uma nicaraguense exilada, assombrada por lembranças da guerra.
É ela quem guiará o olhar de Loach, encarnado no motorista George Lennox, para uma imersão profunda na brutalidade da guerra dos sandinistas versus os "contras" apoiados pelos EUA.
Em vários momentos Loach poderia facilmente ter sucumbido ao discurso panfletário ou à tal ingenuidade humanista européia. Mas o diretor foca sua câmera de uma maneira íntima, quase indiscreta, sem quaisquer planos grandiosos procurando registrar visões gerais.
Ao seguir uma Carla deslocada, perdida, dançando nas ruas de Glasgow por alguns trocados, a câmera íntima de Loach já nos introduz à intensidade da guerra na Nicarágua. E quando finalmente lá aterrissa, Glasgow torna-se em poucos minutos um mundo completamente alienígena.
Por esse mecanismo de estranhamento de seus personagens -Carla na Escócia, George na Nicarágua- Loach aproxima dois mundos, dois antípodas, passando a impressão de que seus atores não atuam ou não percebem a câmera.
Loach hoje é um cineasta amadurecido e, não é exagero, firmou um estilo próprio, baseado no despojamento e numa orientação política que busca insistentemente dar voz aos excluídos. Um artista que ainda acredita na palavra, não no panfleto.

Filme: A Canção de Carla
Onde: Hoje, às 13h, no Maksoud Plaza

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