São Paulo, quinta-feira, 31 de outubro de 1996
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Prefeituras: continuidades diferentes

TARSO GENRO

Dizer que as eleições em grandes cidades do país apontaram para a "continuidade" pela "eficiência" é transformar uma verdade parcial -a saber, que os governos devem ter capacidade de gerência- numa universalidade "forçada", ou seja, numa falsa universalidade, sem atentar para os conteúdos veiculados pela "eficiência".
Curitiba, por exemplo, vem realizando o mesmo tipo de gestão desde a época em que Lerner foi prefeito nomeado pela ditadura: um competente modelo de gestão tecnocrática, que prescinde de qualquer participação ou mobilização da cidadania. Esse modelo permite, por exemplo, que um cidadão sem qualquer tradição ou identificação político-ideológica torne-se prefeito pela simples indicação do mandatário governante.
Essa forma de governar e o conteúdo do programa de governo não alteram as relações de poder na cidade, não mudam sua cultura política, sedimentam a passividade e a indiferença dos cidadãos. É um modelo de governo que tanto pode ser aplicado em pleno regime militar como permite que seus governantes, sem qualquer constrangimento, passem de um partido para outro sem que a população sequer atente para isso.
A situação é análoga em São Paulo, que também permitiu a um executivo desconhecido, sem qualquer tradição ou respeitabilidade conquistada pela sua trajetória política, ir para o segundo turno.
O Rio de Janeiro tem uma gestão sedutora -que combina os "factóides" com cirurgias urbanas apreciadas pela população-, também sem provocar qualquer mudança qualitativa na vida política da cidade. A pobreza dos debates no segundo turno é uma comprovação da atual baixa exigência do eleitorado carioca, cujos líderes procuram conquistar os votos da população pela pura criação de "fenômenos". Os candidatos não sustentam qualquer conjunto de idéias que politize a disputa ou que os diferencie nas questões de fundo.
Para "emparelhar" todas as eleições, desideologizá-las, é necessário, porém, descartar Porto Alegre. E, para isso, sugerir que o orçamento participativo e as variadas formas operativas da democracia direta que aqui se aplicam -que subvertem e, ao mesmo tempo, valorizam a democracia representativa- são apenas métodos gerenciais despidos de qualquer formatação ideológica.
Mas, em Porto Alegre, a população majoritariamente identifica o projeto de governo com um partido que se auto-referencia como socialista e democrático e que geriu a cidade por meio de dois processos fundamentais, capazes de criar uma opinião popular independente: o orçamento participativo, para decidir sobre obras e produzir o orçamento (a partir de 16 conselhos populares), com plenárias que já mobilizaram 200 mil pessoas, que articulam mais de mil entidades e, diretamente, a cada ano envolvem em torno de 20 mil pessoas; e o projeto "Cidade Constituinte", indutor de dois congressos "constituintes" para planejar estrategicamente a cidade e que tiveram a participação dos conselheiros do orçamento participativo e de mais de 300 entidades e instituições, desde as universidades até organizações das classes médias e setores empresariais.
Para citar alguns exemplos de contrapontos concretos à ideologia neoliberal em curso, nosso governo aumentou o número de servidores (em saúde e educação, principalmente); aplicou impostos progressivos; criou uma instituição de fomento às atividades produtivas, com juros abaixo do mercado; investiu pesadamente em obras para qualificar a vida das classes populares; interferiu no consumo oferecendo gêneros baratos a um terço da população, inclusive usando formas indiretas de subsídio; e defendeu, na disputa política, a igualdade e a solidariedade como valores sociais fundamentais para uma nova ordem.
Não desdenho nenhum dos governos que fizeram seus sucessores. Nem menosprezo a capacidade política e administrativa dos seus prefeitos. Mas o governo que o PT e seus aliados fizeram em Porto Alegre não tem nenhuma identidade com os seus métodos de governar e relacionar-se com a cidadania em geral e com as classes populares em particular. Podem dizer até que os seus governos foram "melhores" do que o governo que fazemos em Porto Alegre -esta, aliás, já é uma escolha político-ideológica-, mas jamais poderão demonstrar que somos idênticos. Isso seria o mesmo que dizer que as diferenças entre esquerda e direita não fazem mais sentido, e quem diz isso, pelo conceito, define-se como de direita. Quer, na verdade, se abrigar no "fim das ideologias" para traficar a sua própria como a ideologia única de uma sociedade uniforme.

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