São Paulo, sexta-feira, 1 de novembro de 1996
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Jarmusch

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Começa o filme com um trem, que leva William Blake para uma pequena cidade do Oeste, o território por excelência do passado norte-americano. Mas esqueça o clássico povoado dos "westerns" de Hollywood, aquele pequeno, ativo e empoeirado formigueiro de vaqueiros, damas, carroças e velhotes, microcosmo ensolarado da gênese da América.
Aqui, o western já nasce morto, e o cineasta, embora estabeleça contato e fricção com algumas convenções do gênero, não parece nem um pouco interessado em ressuscitá-lo.
"Dead Man", que estréia hoje em São Paulo, é o sexto filme de Jim Jarmusch, que debutou em 80 com "Permanent Vacation", e se revelou ao mundo em 84, com "Estranhos no Paraíso", saudado por cinéfilos, premiado em Cannes e adotado por platéias mais amplas do que um filme com aquelas características, àquela altura da década, poderia, a um primeiro olhar, conquistar.
Em 86, "Dunbailó" confirmou a vocação desse diretor "independente" norte-americano de transcender o gueto dos aficionados. Seu último filme foi "Uma Noite sobre a Terra", de 92. Esperou quatro anos para retornar. E o fez em grande estilo, abandonando, pela primeira vez, a cena urbana.
Começa, então, o filme -como dizia- com o mocinho chegando.
Estamos na América do século 19, no ambiente mítico do país em gestação. Mas a paisagem, como observa o crítico Jean-Marc Lalanne, no "Cahiers du Cinéma" de janeiro, beira o alucinatório: pessoas atirando em búfalos, um casal praticando sexo no trem, visões de personagens que parecem extraídos da obra de Bosch.
Não apenas esse cenário quase surrealista chama logo a atenção e destaca o filme das familiaridades do western: também a fotografia de Robby Muller, como quis o diretor, não tenta remeter o espectador aos velhos filmes de cowboys, mas claramente ao cinema japonês de Kurosawa e Mizoguchi.
Uma belíssima paleta de tons cinzas passeia pela tela, sem perda do contraste do preto e do branco.
O mocinho William Blake (Johnny Depp) é o homem que traz em si a morte. Não como qualquer um de nós, mas como quem existe unicamente para encontrá-la. E a encontrará nessa parábola trágica, que o levará a matar aqueles que dele se aproximam, numa estranha jornada por mundos desconhecidos.
O destino de Blake, previamente selado, anuncia-se quando, no início do filme, é atingido por um tiro, que atravessa o corpo de uma mulher, disparado pela arma de seu ex-amante -a quem o herói acaba matando.
O poderoso pai do morto -uma aparição "cult" de Robert Mitchum- contrata um grupo para caçar o assassino do filho.
Com uma bala no peito, Blake começa sua fuga, uma longa, violenta, bem-humorada e fantástica agonia, que será conduzida pela figura incomum de Nobody (Ninguém): um índio rejeitado na infância, que acabou aprisionado e levado para exibição na Inglaterra, onde pôde estudar e vir a conhecer a literatura de William Blake.
Nobody acredita que o Blake que encontra ferido nos confins da América é o poeta e pintor inglês, de quem aprendeu versos.
O selvagem letrado levará seu novo amigo por caminhos que se resumem, no fim das contas, a um ritual de preparação para a morte.
Blake é definido por Jarmusch como "uma folha de papel em branco, sobre a qual todo mundo escreve alguma coisa".
Vira bandido "malgré lui", é tratado como poeta sem jamais ter ouvido falar do homônimo, acredita estar sendo salvo e reconduzido à sua Cleveland, quando na verdade será restituído por Nobody ao mundo dos espíritos.
O papel é magnificamente vivido por Johnny Depp, que o diretor diz possuir uma tal brancura que "dá vontade de cobrir de grafites". No caso, um grafismo límpido, com momentos de sofisticada e delicada beleza visual.
Filme: Dead Man Quando: a partir de hoje, no Cinearte 1

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