São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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A procura da felicidade

ROBERT DARNTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

A idéia de felicidade tornou-se parte tão corrente da cultura norte-americana que por vezes chega a sumir do nosso campo de visão. Ela está em toda e em nenhuma parte, menos como idéia que como pressuposto implícito que dá o tom peculiar a certa visão do mundo. Mas não por isso ela deixa de ser uma idéia e, aliás, da perspectiva da história das idéias, com um longo e respeitável pedigree.
Ela aparece, entre os antigos, nas filosofias de Platão e Aristóteles, e em especial no pensamento dos epicuristas e estóicos. Os epicuristas incorporaram o conceito de felicidade a uma filosofia do prazer e da dor, que os levava a propor uma ética do interesse individual racionalmente balizado. Os estóicos ligaram-na à fuga do perigoso tumulto da vida cívica e à satisfação com os prazeres mínimos da vida em ambiente arcádico. "Feliz aquele que, longe dos negócios, vive como a antiga raça de homens, lavrando o solo com seus próprios bois, livre de juros a pagar", disse Horácio no século 1 a.C. Não seria difícil encontrar sentimentos análogos por toda a prosa e a poesia da época de Augusto.
O mesmo não aconteceria se fôssemos aos primeiros cristãos. Antes de sua morte, em 604 d.C., Santo Agostinho caracterizara a vida deste lado da Cidade de Deus como a procura da vaidade em meio a um vale de lágrimas. Sua mensagem correspondia à condição humana, tal como viria a conhecê-la a maioria das pessoas pelos mil anos seguintes, quando homens e mulheres trabalhavam nos campos num estado de semi-escravidão, comendo pouco mais que pão e caldo e morrendo muito jovens. Sua existência podia muito bem ser descrita nos termos que Hobbes reservou à vida humana no estado de natureza: "Solitária, pobre, sórdida, brutal e curta".
Entretanto, por volta do século 15, os filósofos viram-se às voltas com um renascimento da noção de prazer -mundano em Boccaccio e refinado na corte dos Medici. É bem verdade que o "revival" classicista durou pouco, extinto em Florença pela fogueira das vaidades de Savonarola (1497) e em Roma pelo saque promovido pelas tropas de Carlos 5º (1527). A Reforma e as guerras de religião fizeram do sonho de felicidade sobre a Terra uma idéia mais implausível que nunca.
Mas a Era das Luzes deu nova vida à idéia de felicidade, ligada agora a noções novas, como progresso e prosperidade. Os filósofos do Iluminismo consideravam-nas como fim da vida humana individual e coletiva. Os mais radicais entre eles -Diderot, Rousseau, Helvétius e d'Holbach- fizeram do conceito de felicidade a pedra fundamental de um epicurismo modernizado e reforçado por uma forte consciência cívica.
Tendo chegado a esse ponto, a filosofia dos séculos 19 e 20 não podia mais voltar atrás, a despeito das correntes contrárias inspiradas por figuras como Nietzsche e Freud. O grito de batalha de Jeremy Bentham -"a maior felicidade possível para o maior número possível"- fora de fato formulada por dois filósofos do Iluminismo, o escocês Francis Hutcheson e o italiano Cesare Beccaria.
Bentham transformou-a numa filosofia do interesse individual esclarecido, derivada de Lucrécio e Epicuro e adaptada à política reformista britânica. Para Karl Marx, o profeta da felicidade socialista, as reformas liberais jamais conseguiriam conciliar interesses individuais e interesses coletivos, dado o obstáculo das classes sociais. Marx imaginava a felicidade como um estado histórico a ser alcançado ao fim de um processo dialético envolvendo o conjunto da sociedade.
Eis então, muito rapidamente, a história da noção de felicidade tal qual poderia ser vista a grande distância, como a Terra fotografada da Lua. Mas de uma perspectiva assim tudo tende a se confundir com tudo o mais. Que aspecto teria a noção de felicidade se a víssemos de perto?
Gostaria de examinar duas de suas versões, ambas provenientes do que identifiquei como grande ponto de inflexão na história da felicidade -a Era das Luzes. Mais precisamente, quero explorar os significados de duas frases famosas: "Há que cultivar nosso jardim", conclusão que Voltaire apõe a seu "Cândido" (1759); e o direito à "procura da felicidade", proclamado por Jefferson na Declaração de Independência norte-americana. Espero que este esforço lance alguma luz sobre o fenômeno do "american way of life".

Continua à pág. 5-8

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