São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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O colosso informe

FRANKLIN DE MATOS

certa vez, em Ferney, um hóspede de Voltaire pôs-se a fazer a defesa de Shakespeare. Embora seus tipos sejam buscados no meio do povo, dizia o visitante, deve-se reconhecer que eles sempre fazem parte da natureza. O velho patriarca não se conteve: "Com sua permissão, senhor, meu cu também faz parte da natureza e, no entanto, eu uso calças".
A anedota resume o que pensava Voltaire sobre a tragédia em geral e sobre aquele que consideramos um dos maiores dramaturgos de todos os tempos. Para ele, a tragédia era uma imitação de ações elevadas, feita com "decoro" e "unidade de tom", com vistas a despertar o terror e a piedade. Racine realizara esse ideal com a maior perfeição, e o dramaturgo Voltaire não procurava senão imitá-lo. Quanto a Shakespeare, confundia ilegitimamente os tons, passando do riso às lágrimas, misturava o baixo e o alto, afrontava as "conveniências" com suas cenas grosseiras e cheias de sangue. Apesar de admitir às vezes que o poeta inglês era "natural e sublime", Voltaire achava que ele não tinha a menor "centelha de bom gosto". Numa palavra, era um "monstro".
Este juízo expressa de forma acabada um certo gosto que as Luzes não demoraram em combater. Como se sabe, em meados do século 18, as "regras" clássicas passam a ser recusadas em toda parte. Tal recusa pode aparecer ora como elogio da estética do "sublime" -aquilo que não cabe nos limites de uma forma-, ora como abolição de fronteiras entre o elevado e o banal (uma ênfase no chamado "estilo médio", e daí a importância que ganham, por exemplo, a pintura de gênero, o romance, o drama etc.). Tanto num caso quanto no outro, Shakespeare tornou-se um emblema para aqueles que sustentavam esse novo ideal.
Um bom exemplo é Diderot, partidário do chamado drama burguês, que costumava exaltar as "carnificinas de Shakespeare", em prejuízo das "harmoniosas, ternas e tocantes elegias de Racine". É ele o autor desta bela tirada sobre o dramaturgo, na qual, aliás, se reconhece uma ponta de ousadia shakespeariana: "Colosso informe grosseiramente esculpido, mas entre as pernas do qual passaríamos todos sem que nossa fronte lhe tocasse as partes vergonhosas".
Lessing é outro exemplo. Sua "Hamburgische Dramaturgie" combate sistematicamente o classicismo de Gottsched e contém várias referências favoráveis ao autor de "Otelo". A mais famosa, não por acaso, afirma o caráter singular e inimitável do seu gênio: "Há gravado, na menor das suas belezas, algo que imediatamente clama a todo o mundo: Sou obra de Shakespeare -e ai da beleza estrangeira que tenha a pretensão de colocar-se a seu lado".
Na Inglaterra, uma das maiores expressões do mesmo combate é Samuel Johnson, cujo "Prefácio a Shakespeare" sai agora em português -um belo trabalho de Enid Dobránszky. O texto -prefácio à "Obra" de Shakespeare editada pelo "Doutor" Johnson- apareceu em 1765 e retoma a defesa do dramaturgo contra a "miúda e improcedente crítica de Voltaire" (e do inglês Thomas Rymer).
É importante lembrar que, no mesmo ano, chegava a Paris o ator David Garrick, grande intérprete de Shakespeare e um dos mais festejados do século. Durante sua curta temporada, Garrick encantou os enciclopedistas, especialmente Diderot, que o tomará por modelo ao escrever "O Paradoxo Sobre o Comediante". A anedota mostra que Shakespeare era cada vez mais admirado fora da Inglaterra, o que permitia desmontar um dos argumentos favoritos de Voltaire: contrariamente aos grandes trágicos franceses, dizia ele, Shakespeare era apreciado apenas em sua própria nação, o que provaria sua inferioridade.
Não por acaso, assim, a apologia de Johnson se assenta num princípio formulado por Longino e retomado por Boileau ou pela crítica inglesa do século 18: segundo ele, o valor de um escrito literário é decidido pelo veredicto dos séculos e nações. Apenas "as representações legítimas da natureza universal" transcendem os costumes locais ou as opiniões efêmeras e, portanto, agradam a todos, sempre e em toda parte. É o caso, citado por todo o mundo, dos poemas de Homero ou, mais recentemente, das obras de Shakespeare. É como se o "Prefácio" começasse dizendo: Shakespeare, que sobreviveu ao próprio século e ganhou outras nações, tornou-se um "clássico". Tratemos de saber exatamente por quê.
Primeiramente, porque Shakespeare é, dentre os modernos, "o poeta da natureza" ou, se quisermos, "o espelho da vida". Em geral, argumenta Johnson, o teatro está cheio de personagens nunca vistos, conversando numa língua jamais ouvida, sobre os temas mais extraordinários. Em contrapartida, o palco de Shakespeare não é ocupado por heróis, mas "apenas por homens que agem e falam como o leitor imagina que ele próprio teria falado ou agido nas mesmas circunstâncias". O diálogo shakespeariano brota espontaneamente da ação, progredindo de modo simples e fácil, sempre amarrado à vida cotidiana, como se não fosse uma ficção.
Entretanto, precisamente esta fidelidade à natureza provocou em certos críticos a maior indignação. Rymer achava que os romanos de Shakespeare não eram romanos o bastante, e Voltaire não podia admitir que o usurpador de "Hamlet" -afinal, um rei- fosse representado como bêbado. É simples a resposta de Johnson a essas objeções: o teatro de Shakespeare desconsidera as distinções acidentais, quer de país, quer de condição social. Enquanto a maioria dos poetas se interessa pelo "indivíduo", o que atrai Shakespeare é "a espécie" (alguns diriam, "o modelo ideal", outros, "o típico"). Em poucas palavras: "Sua história requer romanos ou reis, mas ele pensa apenas em homens".
O que torna tudo isto possível é a natureza particular das composições shakespearianas, que não são nem tragédias nem comédias, mas "dramas". Quer dizer: peças que alternam livremente cenas cômicas e trágicas, personagens "circunspectos" e "joviais", ora apresentando "gravidade e tristeza", ora "leveza e riso". É bem conhecida a objeção dos críticos dogmáticos: esse hibridismo é inadmissível, pois mistura domínios "morais" que devem ser distinguidos. Para Johnson, porém, ela não resiste ao argumento tantas vezes repetido durante o "Prefácio": ao proceder desse modo, o drama apenas reflete "a vida", "o curso do mundo", que abrange os benefícios e os malefícios, a alegria e a tristeza, o elevado e o banal.
Até aqui, pode-se dizer que o "Doutor" não é propriamente original, limitando-se a sistematizar -e subordinar ao elogio de Shakespeare- uma porção de teses favoráveis ao drama, que foram se tornando frequentes à medida que se aproximava a metade do século. Mas não é o caso das páginas dedicadas à desobediência de Shakespeare às três unidades, nas quais Johnson demonstra toda a novidade e ousadia de sua argumentação.
Como se sabe, a lei das três unidades é a pretensa retomada e explicitação de algumas lições contidas na "Poética" de Aristóteles. Segundo ela, uma peça de teatro só será verossímil se possuir unidade de ação, tempo e espaço. De ação: a fábula deverá ter princípio, meio e fim, cada evento levará ao outro necessariamente e o desenlace surgirá naturalmente do desenvolvimento. De tempo: o tempo de uma ação não ultrapassará um dia, pois jamais o espectador poderá acreditar que uma ação desenvolvida no transcorrer de meses ou anos tenha-se passado nas duas ou três horas da representação. De espaço: se o primeiro ato se passou em Alexandria, o segundo não poderá se dar em Roma, pois o espectador sabe muito bem que jamais poderá percorrer tal distância em tão curto intervalo de tempo.
Quanto ao primeiro ponto, Johnson não contesta a tradição, e Shakespeare tampouco, pois em geral suas ações seguem a unidade definida na "Poética". Mas não é o caso dos outros itens. Quem leu ou assistiu "Otelo" sabe que o primeiro ato do drama se passa em Veneza, e os demais em Chipre; sabe também que, entre o primeiro e o segundo, transcorrem as bodas de Otelo, o deslocamento da expedição veneziana e a dispersão da esquadra turca que se aproximava da ilha. Será que essas transgressões tornam inverossímil o drama de Shakespeare?
De modo algum, responde Johnson, e por uma boa razão: "É mentira que uma representação seja confundida com a realidade, que uma fábula dramática tenha alguma vez realmente acontecido ou, por um único instante, que se tenha nela jamais acreditado. A objeção advinda da impossibilidade de passar a primeira hora em Alexandria e a seguinte em Roma pretende que, iniciada a peça, o espectador realmente se imagine em Alexandria e creia que sua caminhada para o teatro tenha sido uma viagem ao Egito e que viva na época de Antônio e Cleópatra. Sem sombra de dúvida, aquele que pode imaginar isto pode imaginar mais". Portanto: "Que absurdo haverá em admitir que o espaço represente primeiro Atenas e depois a Sicília, que desde sempre se soube não ser nem a Sicília nem Atenas, mas um teatro moderno?".
Ora, a tentação aqui é comparar a posição de Johnson com a de Diderot. Com efeito, Diderot jamais deixou de admitir as unidades clássicas, entre outras razões porque, no teatro, deve-se ver muito e imaginar pouco. Ou, se quisermos, imagina-se um pouco depois de ver muito. "Pintar à minha imaginação", diz ele, é tarefa do romancista; ao dramaturgo cabe outra coisa -"colocar em ação aos meus olhos". Por isso o trabalho deste último é bem mais complicado: se a imaginação é crédula e ativa, os sentidos são desconfiados e passivos. Num romance, em que estamos sujeitos a um narrador, o tempo tende a ser mais amplo, devem-se acumular as circunstâncias e pode-se complicar ao máximo. Não é o caso de um drama, onde tudo deve ser simples -a ação, o tempo etc. Quanto à unidade de espaço, Diderot estava disposto a esquecê-la, caso dispusesse de teatros em que o cenário mudasse todas as vezes em que o lugar da cena devesse mudar. Ou seja: em que a mudança pudesse ser "vista" pelo espectador e não apenas "imaginada", como pretende Johnson.
Mas há ainda outra objeção, esta formulada pelo próprio crítico: como pode nos comover um drama, se nos recusamos a acreditar nele? Aqui, Johnson se põe a esclarecer a natureza de nossa crença numa peça teatral. Segundo ele, o teatro não proporciona a ilusão de que os males representados sejam reais, mas apenas a de que, por um momento, o espectador se crê infeliz. De modo lapidar, Johnson escreve: "O prazer na tragédia provém de nossa consciência da ficção; (...) As imitações causam dor ou prazer, não porque sejam confundidas com a realidade, mas porque nos recordam a realidade". Ou ainda: "A verdade é que os espectadores estão sempre de posse de suas faculdades e sabem, do primeiro ao último ato, que o palco é apenas um palco e que os atores são apenas atores".
Em "Racine e Shakespeare", incluído como apêndice ao presente volume, Stendhal retoma parte dessa argumentação contra as três unidades. Como bem observa a tradutora, é enorme a afinidade entre os dois textos, o que justifica sua reunião. Espero, porém, que o leitor não fique tentado a ver em Johnson uma espécie de pré-romântico. Ao contrário, a leitura do "Prefácio" nos permite identificar com toda a clareza a perspectiva "neoclássica" da crítica johnsoniana. Como se viu, o texto começa por contestar o amaneiramento da poética e da tragédia clássicas e insiste na idéia de que o teatro é uma imitação da natureza. Em seguida, porém, Johnson recusa-se a admitir qualquer identificação naturalista entre a "imitação" e a "realidade": o palco é apenas um palco. A exemplo dos neoclássicos, ele combate, assim, em duas frentes: contra os maneiristas, sustenta que o teatro é uma "reprodução fiel" da natureza; contra os naturalistas, afirma que é, ao mesmo tempo, uma espécie de "triunfo" sobre ela.
Sobre esse ideal, gostaria de lembrar duas coisas. Primeiro, que o colosso era demasiado informe para tanto equilíbrio e, daí, talvez, as páginas que Johnson dedica à enumeração dos "defeitos" de Shakespeare (para espanto do leitor moderno, habituado a reverenciá-lo sem reservas). E enfim, foi decerto pensando nesse ideal e em críticos como Samuel Johnson que, em 1757, David Hume escreveu: "Só o bom senso, ligado à delicadeza do sentimento, melhorado pela prática, aperfeiçoado pela comparação e liberto de todo preconceito, é capaz de conferir aos críticos esta valiosa personalidade, e o veredicto conjunto dos que a possuem, seja onde for que se encontrem, é o verdadeiro padrão do gosto e da beleza".

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