São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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Tudo era luz

HENRIQUE FLEMING

o casionalmente, tenho sido consultado por editoras universitárias sobre a conveniência de se publicar a tradução, em português, de alguma obra científica famosa, de língua inglesa. Respondo, o mais das vezes, que, se o leitor tem o nível de formação requerido pela obra, certamente poderá lê-la no original, com muitas vantagens. E não se correrá o risco de municiar mais um tradutor-traidor para as funções de estropiar a obra e as duas línguas envolvidas. Foi, por isso, com alguma hesitação, que aceitei o convite para comentar a tradução da "Óptica" de Isaac Newton. Surpreendi-me, agradavelmente, ao ver que o tradutor era um brilhante pesquisador da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), e de cuja face erudita não tinha conhecimento. E essa foi só a primeira de uma série de surpresas agradáveis.
Isaac Newton é o maior nome da física. Não só descobriu a lei que governa o movimento dos corpos sujeitos à ação da gravidade, como apregoou a sua universalidade, ao comparar, como análogas, a queda de uma maçã ao solo com a queda interminável da Terra sobre o Sol. E, como se fosse uma tarefa menor, ancilar, descobriu a maneira de descrever matematicamente o movimento e todas as coisas que variam continuamente. Chamou-a de "cálculo das fluxões". Nós hoje usamos o nome de "cálculo diferencial e integral", fazemos dele a base da física teórica, que nos permite não só a descrição quantitativa da natureza, mas a previsão quantitativa de fenômenos.
E não só dos fenômenos naturais, mas também, por exemplo, dos que ocorrem naquela particular espécie de realidade virtual que se chama economia: os físicos, matemáticos e engenheiros invadiram as corretoras de Wall Street porque conhecem bem as fluxões de Isaac Newton. Coincidentemente ou não (provavelmente não!), um dos grandes nomes da área, lord Keynes, foi estudioso e importante colecionador da obra de Newton. Em 1930, adquiriu, em um leilão, muitos de seus trabalhos inéditos sobre a alquimia. Em transe, passou muitas horas debruçado sobre as caixas que continham seu tesouro sem preço e mais tarde escreveu um artigo sobre as suas turbadoras descobertas. O que Keynes lera o fez disputar a concepção do século 18 de que Newton fora "o primeiro e maior dos cientistas da Idade Moderna, um racionalista, que nos ensinou a pensar ao longo das linhas da razão fria e sem adornos" (1). O Newton proposto por Keynes era, em contrapartida, "o último dos mágicos, o último dos babilônios e sumérios, a última grande mente que olhou para o mundo visível e intelectual com os mesmos olhos com que o fizeram aqueles que começaram a construir nossa herança intelectual, há menos de 10 mil anos".
A "Óptica" não é o livro mais famoso de Newton. Este lugar é ocupado pelos "Principia" ("Philosophiae Naturalis Principia Mathematica"), onde expõe sua teoria do movimento e a "gravitação universal". Embora, por concessão ao leitor, sir Isaac tenha optado por uma reelaboração da teoria que não fazia uso das fluxões, os "Principia" são assim mesmo de leitura árdua, em parte pela adoção do estilo tornado famoso pelos "Elementos" de Euclides: organização excessiva, o mesmo problema que apresenta a leitura da "Summa Theologica" de São Tomás de Aquino. (A propósito, o grande astrofísico indiano Subrahmanyan Chandrasekhar publicou, recentemente, sua derradeira obra antes de morrer, um magnífico "Newton's Principia for the Common Reader", Clarendon Press).
A "Óptica", originalmente intitulada "Opticks", é obra muito diferente dos "Principia". Num certo sentido, complementa-os: se estes apresentam o Newton físico-teórico descrevendo o seu Sistema do Mundo, aquela nos introduz ao Newton físico-experimental, instrumentalista mesmo, e com preocupações didáticas. Diz o autor: "E isso pode bastar para uma introdução aos leitores de inteligência ágil e bom entendimento ainda não versados na óptica; mas os que já estão familiarizados com essa ciência e tenham manejado lentes apreenderão mais prontamente o que segue".
A melhor leitura da "Óptica" é uma leitura lenta, amorosamente lenta, "ad'aggio", como diriam os italianos. Penso, por exemplo, no extraordinário curso que se poderia dar utilizando a obra de Newton como texto e reproduzindo em um laboratório simples as suas experiências, refazendo cuidadosamente a viagem de Newton. Assim como a lentidão da resposta do mármore ao cinzel disciplina as idéias do escultor, o diálogo entre os saltos vertiginosos da mente e o meticuloso trabalho das mãos disciplina o cientista; assim é feita a ciência, e aprender isso é muito importante. Não seria demais pensar em exigir um estudo da "Óptica" como requisito para a formação de um professor de física. A única dificuldade, a leitura em inglês antigo, deixou agora de existir.
Ao longo de todo o livro, Newton experimenta com a luz. Primeiro, o que chamamos hoje de óptica geométrica: a reflexão e a refração, o olho humano incluído. Aí se pode ver o físico experimental em sua plenitude: o enunciado que dá para o que hoje chamamos de lei de Snell-Descartes é: "O seno de incidência está para o seno de refração em uma certa razão precisa ou muito aproximada". Ou muito aproximada! Em que texto de óptica geométrica se encontra este cuidado no enunciado, e que corresponde realmente aos fatos! Termina a seção sobre o olho assim: "Pois homens míopes enxergam melhor os objetos distantes na velhice e são portanto considerados os que têm os olhos mais duradouros".
Depois, as cores, que logo associa a "graus de refringência", ou seja, a quanto a luz se desvia numa determinada refração. A luz monocromática é chamada de homogênea, e ela "é refratada regularmente sem nenhuma dilatação, divisão ou despedaçamento dos raios, e a visão confusa de objetos vistos através de corpos refratores por luz heterogênea decorre da diferente refratabilidade das várias espécies de raios". E, por isso, introduzirá, pouco depois, o telescópio refletor. Pois "a perfeição dos telescópios é impedida pela diferente refringência dos raios de luz". Note-se que estas duas últimas citações constituem, no texto, enunciados de "teoremas" cuja demonstração consiste numa experiência ou numa série delas.
A "Óptica" de Isaac Newton é uma preciosidade editorial em muitos aspectos. O respeito pelo autor manifesta-se constantemente. Não é para menos: o tradutor é um dos pouquíssimos seres vivos a ter em sua obra um trabalho científico, e não de opinião, que estabelece fundações para uma nova crítica newtoniana referente, em essência, à relatividade da inércia, continuando, em nossos dias e melhor, a crítica original de Berkeley, levada adiante por Ernst Mach. Sua "Apresentação", fina e entusiasta, e a abundância de notas ao longo do volume, estendem a obra de Newton até que se torna uma ótima introdução à história da ciência moderna, e uma boa bibliografia do campo, com oportuna ênfase no material em português.
A Edusp produziu um lindo volume, em papel areia, que convida à leitura e repousa os olhos, e com uma tipografia digna da Springer Verlag. A capa, de Rodrigo D'Ávila Pimenta, é um esplêndido trabalho sobre um retrato clássico de Newton, que impele o leitor a examinar o texto. Um digno tributo "a tamanho ornamento da raça humana", como se lê na abadia de Westminster.

NOTA:
1. J. M. Keynes, "Newton the Man", in J. R. Newman (ed.) "The World of Mathematics", Nova York, 1956.

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