São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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Navegar é preciso, mas não sei por que estou navegando

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Não muito longe daqui, deste ponto do Mediterrâneo que agora atravesso sem saber bem por que nem para que, Pompeu se antecipou a Fernando Pessoa, Ulysses Guimarães e Caetano Veloso: disse que navegar é preciso.
Havia precisão de fato: Roma estava sem pão, Pompeu dividia o poder com César, foi buscar trigo nas províncias ao norte da África. Com os porões abarrotados de grãos que matariam a fome de um império, enfrentou a tentativa de motim de seus marinheiros.
O tempo -ao contrário de agora, que está calmo, céu e mar azulados pela boa luz do sol mediterrâneo- anunciava tempestades e naufrágios. Os marinheiros se recusaram a empunhar remos, a desdobrar velas. Foi então que Pompeu, sem saber que fazia uma frase, disse que navegar é preciso.
Não adiantou muito a sua biografia. Pouco depois, César voltaria com seus exércitos vitoriosos e, contrariando a lei que garantia a república, atravessou o Rubicão. Nenhum general poderia entrar em Roma com suas tropas, era o princípio legal que impediria o golpe de Estado, o Rubicão não chegava a ser um limite geográfico (na verdade, é um riacho insignificante), era apenas um limite moral.
César fez outra frase (os romanos gostavam de fazer frases e, como falavam latim, as frases já vinham prontas para serem repetidas através dos tempos: "allea jacta est").
O resto é sabido: César perseguiu Pompeu, que esboçou uma reação, mas não tinha o carisma nem a circunstância de estar regressando vitorioso de uma grande campanha. Não foi o primeiro nem seria o último golpe militar da história. Mas foi, talvez, o mais famoso, pois, além da frase, criou o cesarismo.
Mais tarde, ao ser apunhalado nos idos de março, envolto em sua toga manchada de sangue, César teria dito (não disse, mas Shakespeare disse por ele): "Quantas vezes essa cena será repetida?" (estou citando de memória, a 10 mil quilômetros da Lagoa e dos meus livros, valho-me dessa erudição de almanaque Capivarol para iniciar este artigo, a bordo de um navio que, segundo Luiz Caversan, "zarpou" de Gênova anteontem, fez escalas em Nápoles e Catânia e agora se dirige a Creta -águas e terras que fizeram história e me fizeram pegar uma gripe danada, há muito vento nesta época do ano e dei sopa lá em cima, pensando em meus problemas enquanto lembrava a emoção com que recitava aquela ode de Horácio dedicada a Virgílio: "Navis quae tibi creditum").
Como todo mundo sabe, Virgílio veio para estas mesmas terras e águas a fim de escrever sua Eneida. Ao despedir-se do amigo Horácio, recebeu dele a famosa ode que canta a amizade entre os homens: foi chamado de "metade de minha alma", ao mesmo tempo em que teve invocados a seu favor todos os deuses, "sic te diva potens Chipri, sic frates Helenae lucida siderum".
Seria assim que eu gostaria de atravessar essas águas, protegido pelos deuses e tendo alguém a me considerar metade de sua alma. Já que o destino obrou em contrário, em represália não me sinto obrigado porra nenhuma a escrever um poema como a Eneida, nem mesmo um artigo decente como os leitores merecem.
Estou gripado e tive problemas com o "notebook": não consegui instalar o fax-modem -apetrechos que Virgílio e Horácio desprezariam, tanto como eu, mas deles não teriam servidão, o que não é o meu caso. Preciso cada vez mais dessas coisas complicadas e de um descongestionante nasal que me faça melhor respirar essas águas onde deslizam sereias desde os tempos de Homero.
Olho profundamente as ondas, não vejo sereias nem ouço seus cânticos enfeitiçados. O alto-falante de bordo, mais prosaico e globalizado como os tempos que atravessamos, manda que adiante o relógio de uma hora. Para quê? Aparentemente, uma hora a mais ou a menos não altera nem a marcha no navio, nem a marcha do tempo -que continua azul. Antes de Gagarin descobrir que a Terra era azul, Saint-Exupéry, perdido em seu pequenino avião de caça, viu uma poça azul no horizonte e se orientou por ela: era o Mediterrâneo.
Não devo estar perdido. Confio estupidamente no comandante Massimo Persival, que deve saber para onde está me levando, mas sinto que estou mergulhado nessa "poça azul" que orientou e salvou a vida do escritor-piloto. Bem verdade que ele se perdeu, mais tarde, evaporando-se no ar como uma bolha de sabão. De qualquer forma, sinto-me bem sabendo que estou em terra firme, embora esteja sobre as águas que formam a poça azul.
Daqui a pouco, passarei pelo templo de Posseidon, aquele templo muito branco e de muito mármore, dedicado ao deus das águas que os latinos chamavam de Netuno e os gregos de Posseidon mesmo. Os marinheiros não se aventuravam no mar largo sem antes invocarem o deus que dominava ondas e monstros marinhos, monstros que Horácio, no poema acima citado, chamou de "infames".
Não sou marinheiro, não sou metade da alma de ninguém, nem sei como nem para que estou metido nessa -mas vou avante. E como não se dá chute em despacho de macumba, invocarei Posseidon e enfrentarei a meu modo as infâmias todas.

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