São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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Paixão e melancolia da leitura

JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A crítica norte-americana Barbara Hernnstein Smith escreveu um livro muito instigante sobre como terminam os poemas. Creio que se poderia escrever outro sobre como começam os ensaios críticos.
A partir de que momento, por exemplo, a experiência de leitura lança o leitor para o momento difícil de iniciar uma discussão por escrito daquilo que esta ou aquela obra deixou como marca exigindo uma partilha pública. Gostaria de acentuar: não apenas a obra, mas aquilo que a obra imprimiu como inquietação no espírito do leitor. O que entre o leitor e a obra significou, num primeiro momento, conversa ou discussão privada e silenciosa e que, num segundo momento, passa a ser exposição pública.
Entre a leitura e a escrita sobre a leitura, há um momento delicado e incerto em que o leitor, agora emulando o escritor, busca refazer uma experiência que foi pessoal, criando um novo espaço de linguagem que seja capaz de articular idéias, sugestões, emoções despertadas pela linguagem anterior da obra lida. Este momento é, certamente, aquele em que é dado o tom do ensaio. Mais ainda: um momento em que se percebe a intensidade com que a leitura abre para outro leitor, o do ensaio crítico, a possibilidade de tomar parte, ele também, em uma experiência de leitura original e primeira.
A leitura de uma leitura: mecanismo de reprodução que é, em grande parte, responsável pela continuidade daquilo que se costuma chamar de experiência da literatura.
A intensidade referida é outro nome para nomear as gradações possíveis da paixão pela leitura que traduz a maneira pela qual o primeiro leitor e autor do ensaio crítico se entrega àquelas idéias, sugestões e emoções da obra. Mas é uma entrega paradoxal, uma espécie de rendição estratégica que prepara uma volta armada (a expressão ecoa, para mim, o título de um "estudo sobre os métodos da crítica literária moderna", "The Armed Vision", escrito nos anos 40 por Stanley Edgar Hyman) por tudo o que a obra foi capaz de oferecer e não o seu desprezo.
Nessa volta, entretanto, há um segredo: é que os elementos oferecidos pela obra lida são acrescentados por todos aqueles outros que fazem parte da experiência anterior do leitor, quer os que decorrem de outras leituras, quer os que constituem a própria identidade do leitor como participante de um espaço e de um tempo determinados. E, por isso, existem leitores mais ou menos equipados para a leitura. Aqueles que conversam com um número maior de textos no próprio ato da leitura de uma única obra, e envolvem nesta conversa uma experiência larga do mundo e dos homens, e aqueles que tangenciam um monólogo solipsista pela menor experiência dos textos, dos homens e do mundo.
E assim se inicia este ensaio crítico que busca registrar (e convidar para ela o eventual leitor segundo) uma leitura do último livro de George Steiner, "No Passion Spent. Essays 1978-1996", elegante edição da Faber and Faber que traz na sobrecapa, como ilustração, o quadro "Le Philosophe Lisant", de Jean-Baptiste-Siméon Chardin, também reproduzido no verso da falsa folha de rosto, e que é assunto do primeiro texto da coletânea, "The Uncommon Reader". É o único texto dos anos 70: todos os demais, totalizando 21, pertencem aos anos 80 e, sobretudo, aos anos 90.
Eu já o tinha lido em forma de opúsculo, resultado, creio, de uma conferência (no volume em apreço não vem, no caso, indicação de origem) proferida em biblioteca de Nova York, onde o encontrei em livraria de livros usados. Lido agora, como texto inicial de um livro de ensaios, ele assume uma outra dimensão e ganha nova coerência: é, por assim dizer, o diapasão pelo qual se mede o timbre dos demais textos do livro. É, ao mesmo tempo, um exercício de paixão e de melancolia e não poderia ser diferente pois se, por um lado, exalta as virtudes da leitura que o quadro de Chardin propõe -a figuração do leitor que, armado de todos os utensílios então utilizados para a atividade de leitura, tais como pena para as anotações possíveis, lentes de aumento para melhores identificações ou até mesmo uma ampulheta para, quem sabe, marcar o tempo de leitura-, por outro, registra a impossibilidade de continuidade desse "leitor incomum" nos tempos atuais, por onde ressalta a metáfora que a imagem da ampulheta possa conter pela indicação de um tempo de leitura antes medido pelo passar lento da areia de um cone a outro do que pelo mecanismo sofisticado dos nossos relógios de quartzo.
O começo do ensaio de Steiner já é por si revelador, como costuma acontecer, da tonalidade não somente do ensaio, mas de todo o livro: uma prosa que informa o leitor, mas que, informando, vai criando espaços de análises, giros interpretativos que antes criam problemas do que oferecem soluções. Observe-se:
" 'O Filósofo Lendo' de Chardin foi terminado em 4 de Dezembro de 1734. Pensa-se ser um retrato do pintor Aved, um amigo de Chardin. O assunto e a pose, um homem ou uma mulher lendo um livro aberto sobre uma mesa, são frequentes. Formam quase um subgênero de interiores domésticos. A composição de Chardin tem antecedentes em iluminuras medievais em que a figura de São Jerônimo ou algum outro leitor é ela mesma ilustrativa do texto que ilumina. O tema permanece popular até bem entrado o século 19 (testemunha isso o célebre estudo de Baudelaire lendo por Courbet ou os vários leitores pintados por Daumier). Mas o motivo de 'le lecteur' ou 'la lectrice' parece ter gozado uma prevalência particular durante os séculos 17 e 18 e constitui um laço, de que toda a produção de Chardin foi representativa, entre a grande época dos interiores holandeses e o tratamento de assuntos domésticos à maneira clássica francesa. Por si mesmo, portanto, e em seu contexto histórico, 'O Filósofo Lendo' envolve um tópico comum tratado convencionalmente (embora por um mestre). Considerado em relação a nosso próprio tempo e códigos de sentimento, contudo, esta expressão 'vulgar' aponta, em quase cada detalhe e princípio de significado, para uma revolução de valores".
Na verdade, é desta última que trata o ensaio, seguindo uma pormenorizada leitura do quadro e saindo do quadro para os vários hábitos de leitura através das épocas, chegando aos dias atuais, em que Steiner sonha com "escolas de leitura criativa", imaginadas a partir das usuais "escolas de escrita criativa", cujo programa é delineado nos últimos parágrafos do texto:
"Uma aula de 'leitura criativa' procederia passo a passo. Começaria com a quase-dislexia dos hábitos correntes de leitura. Aspiraria atingir o nível de competência informada prevalecente entre os bem-educados na Europa e nos Estados Unidos, diga-se, no fim do século 19. Aspiraria, idealmente, àquele 'achèvement', àquele preenchimento e pleno envolvimento com o texto do qual fala Péguy e do qual completos atos de leitura como o de Mandelstam sobre Dante ou o de Heidegger sobre Sófocles são exemplares". E, em seguida, terminando o ensaio, a nota de melancolia:
"As alternativas não são tranquilizadoras: vulgarização e pesados vazios da inteligência, de um lado, e o retraimento da literatura para dentro de gabinetes museológicos, de outro. O vistoso 'esboço de enredo' ou a versão pré-digerida e trivializada do clássico, de um lado, e a ilegível edição de variantes, de outro. A cultura letrada deve empenhar-se em recuperar o terreno mediano. Se falhar em fazê-lo, se 'une lecture bien faite' se transformar num artifício datado, um grande vazio entrará em nossas vidas, e não experimentaremos mais a quietude e a luz no quadro de Chardin".
É desta matéria, entre a paixão e a melancolia da leitura, que é feito todo o livro, seja um prefácio para a Bíblia hebraica, de inestimável préstimo para a compreensão de cada um dos livros do Velho Testamento, seja uma resenha das várias versões de Homero para o inglês, seja um ensaio sobre Shakespeare, ou sobre Simone Weil, ou Péguy, ou Husserl, ou Freud, ou Kafka, ou Kierkegaard, ou mesmo mais teóricos e didáticos como aqueles sobre literatura comparada ou a tradução como "an exact art", é sempre a tensão entre a entrega total à leitura vagarosa e paciente (aquilo que o verbo inglês "to peruse" significa sem equivalente em nossa língua) e a meditação melancólica sobre os desacertos do mundo contemporâneo com relação à leitura que serve como elemento estruturador.
Neste caso, o começo do ensaio, num lance raro e belo, é também o seu fim.

Onde encomendar: Existem duas edições em inglês de "No Passion Spent". A edição inglesa (Faber and Faber) custa 20 libras e a edição americana (Yale University Press), US$ 24. Ambas podem ser encomendadas, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396).

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