São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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Os resistentes da palavra

ALEKSANDAR JOVANOVIC
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao conferir o Prêmio Nobel de Literatura à poeta Wislawa Szymborska (1923-) (pronuncia-se aproximadamente Vis-uá-va Chem-bor-ska), a Academia Sueca chama a atenção para a "geração de 56" de escritores poloneses e convida-nos a uma reflexão interessante a esse respeito. A bem da verdade, talvez Szymborska, na metade dos anos 50, nem tenha sido o nome de maior destaque do movimento neovanguardista, surgido na Polônia em 1956, quando um grupo de escritores, sobretudo poetas, acabou sendo mensageiro de uma nova estética (1). Ainda assim, ela tornou-se o marco mais importante dessa geração e uma das principais poetas contemporâneas de língua eslava.
Talvez não tenha sido muito diferente, como lembra Nelson Ascher, com os prêmios conferidos ao espanhol Vicente Aleixandre, ao tcheco Jaroslav Seifert ou ao russo Boris Pasternak. Eles foram agraciados com o Nobel de Literatura, mas, de certa maneira, era uma geração toda que acabava recebendo um reconhecimento -indireto ou tardio, não importa. Afinal de contas, Rafael Alberti ou Federico Garcia Lorca jamais foram menos importantes que Aleixandre. O mesmo pode ser dito dos russos Anna Akhmátova, Marína Tzvietáieva ou Óssip Mandelchtam em relação a Pasternak, ou dos tchecos Vitezslav Nezval, Konstantin Biebl ou Frantisek Halas, quando alinhados com Seifert.
Para compreender melhor as condições em que a "geração de 56" floresceu, é preciso lembrar que a Europa saiu da Segunda Guerra Mundial, em 1945, em ruínas -físicas e morais. A Polônia foi o território escolhido pelos macabros dirigentes do 3º Reich para cometer a maior parte do Holocausto. Em seguida, o "socialismo real" envolveu não somente poloneses mas a Europa Centro-Oriental, de maneira generalizada, nas brumas do realismo socialista (2), idealizado por Andrei Jdanov (1896-1948). O jdanovismo, portanto, era sinônimo de uma arte que se tornava objeto de "receitas" impostas a partir de um enfoque estritamente ideológico; a(s) vanguarda(s) era(m) considerada(s) sinal de decadência e os modelos literários eram, na prosa, o realismo-naturalismo da segunda metade do século passado e, na poesia, o romantismo.
No pós-guerra imediato, a literatura polonesa pode ser pensada como a sucessão de três momentos distintos. De 1945 a 1949, houve debates sobre os propósitos da literatura dentro de um país combalido; em Cracóvia, as revistas "Odrodzenie" (Renascimento) e "Twórczosk" (Criatividade) e, em Lódz, a revista "Kuznica" (A Forja) representavam as principais tribunas. Entre 1949 a 1955, imperou o jdanovismo, que não permitia a publicação de obras que representassem qualquer desvio ideológico ou mesmo formal. A partir de 1956, apareceram as mudanças qualitativas. Não se tratava de uma simples coincidência: no mesmo ano havia sido realizado o 20º Congresso do PC soviético, que iniciava o processo de desestalinização, e explodia a revolta na Hungria.
A neovanguarda não foi a reedição da vanguarda clássica; trata-se de uma literatura que se expressava por intermédio de movimentos, de forma organizada, baseada em grupos de escritores, e que objetivava a renovação radical da arte e da sociedade. Assim, na Polônia, a "geração de 56" abriga figuras distintas, mas que, ao mesmo tempo, se aglutinam; portanto, trata-se de uma síntese complexa e peculiar.
Nomes da "geração de 56" são os de Zbigniew Herbert (1924-), Tadeusz Rózewicz (1921-), Miron Bialoszewski (1921-1983), Jerzy Harasymowicz (1933-), Timoteusz Karpowicz (1921-), Stanislaw Grochowiak (1934-1976), Slawomir Mrozek (1930-) -muito menos conhecidos no exterior que alguns de seus contemporâneos, como o cineasta Andrzej Wajda (1926-), o romancista Jerzy Andrzejewski (1909-1983), autor de "Cinzas e Diamantes", ou o dramaturgo Jerzy Grotowski (1933-).
Bialoszewski desejava destruir as fronteiras entre arte e não-arte, fundindo todas as diferenças entre estes dois pólos antitéticos; Herbert monta e desmonta o seu próprio mundo linguístico, enredando-o de elementos provenientes da mitologia; Rózewicz, em linguagem despojada, sempre evoca os horrores da Segunda Guerra; Karpowicz desmonta a sintaxe e transforma os objetos em metáforas, e Grochowiak está bastante vinculado ao expressionismo. Mrozek, de sua parte, ficou conhecido como um dos autores do "teatro do absurdo", cuja figura principal, na Polônia, é, sem dúvida, Rózewicz.
Szymborska publicou seus dois primeiros livros em 1952 e 1954 -respectivamente "Dlatego Zyjemy" (Por Isso Vivemos) e "Pitania Zadawane Zobie" (Perguntas a Mim Mesma)- num momento em que outros autores preferiam continuar inéditos para não ter de aderir ao formato oficial. De qualquer modo, sua poesia evoluiu, vestindo uma forma direta e simples, e abrangendo uma temática bastante ampla e diversificada em que se alternam lirismo e antipoesia, sátira fina e ceticismo. Um tema recorrente de seus textos está vinculado à relação existente entre o artista e sua obra. Apesar disso, Szymborska jamais articulou qualquer teoria própria sobre poesia ou literatura e, ainda assim, nenhum tema parece escapar-lhe ao interesse. Por outro lado, ela trata como facetas diversificadas de um único tema as relações entre a memória e o sonho. Também as leituras filosóficas de Szymborska transparecem em muitas passagens das mais de duas centenas de poemas que escreveu ao longo de quase quatro décadas de atividade literária ininterrupta.
Rózewicz, ex-guerrilheiro da Resistência (3), estréia em 1947 e acaba produzindo poesia, prosa e dramaturgia. Atormentado pelo espectro da Segunda Guerra, a literatura não lhe parece algo diferente de um engodo para encobrir a brutalidade humana. Por isso, a sua antiliteratura procura destruir as convenções. Como observa Czeslaw Milosz, em Rózewicz a oposição à métrica, à rima e até à metáfora tem uma dimensão moral. Seus versos têm construção simples, são carregados de corrosão irônica; Rózewicz é uma espécie de poeta do caos, que recolhe fragmentos do mundo.
Herbert e Bialoszewski debutam em 56 e ambos escrevem poesia e peças teatrais. Este último foi outro "antipoeta", cujo primeiro livro intitulava-se "Obroty Rzeczy" (Rotação de Coisas). Seus jogos linguísticos conduzem a uma rota em que a realidade acaba sendo substituída, simplesmente, pela linguagem.
Zbigniew Herbert, mais um ex-guerrilheiro, caminha sobre o pólo oposto a Rózewicz, produzindo uma poesia irônica e intelectualizada, cujos heróis são os personagens da Antiguidade clássica e da mitologia, a exemplo da técnica empregada pelo sérvio Miodrag Pávlovitch (1928-). Seu tema predileto, no entanto, é a tensão criada entre a preocupação do artista com a forma e sua compaixão pelo sofrimento humano, Karpowicz é o poeta que desmonta a sintaxe, enquanto Harasymowicz sinaliza vínculos com o surrealismo, embora sua temática esteja concentrada nas bucólicas paisagens do campo polonês. Grochowiak, por seu turno, foi o fundador do "turpismo" (do latim "turpis", torpe, desfigurado), e sua sátira moral sempre gira em torno das relações entre amor e morte.
Como escreveu certa feita Stanislaw Grochowiak, o poeta deve sentir a riqueza da diversidade das palavras, ordenando-as em associações plásticas interessantes, de tal modo que ele acaba sendo -ao mesmo tempo- um selecionador e um inventor, um arquiteto e um matemático, um músico e um pintor. Se levarmos em consideração o legado da "geração de 56", seus protagonistas -e cada um à sua maneira- não deixaram de cumprir esses objetivos.

Notas:
1. Talvez seja suficiente lembrar o fato de que Czeslaw Milosz, em seu monumental livro "The History of Polish Literature" (Berkeley, University of California Press), dedica a Szymborska exatamente dez linhas e transcreve e traduz para o inglês um único poema, muito menos do que o espaço dedicado a poetas como Rózewicz e Herbert, por exemplo. Mais tarde, em 1983, Milosz reveria essa postura, reconhecendo que não havia, inicialmente, prestado a devida atenção a Szymborska. É interessante notar, por outro lado, que o crítico húngaro Miklós Szabolcsi aponta para a convergência de mudanças generalizadas na literatura dos anos 50, propiciando o surgimento de uma neovanguarda diversificada, inclusive em vários países do bloco socialista, como foi o caso da Polônia, Iugoslávia e Hungria ("Világirodalom a 20. Században. Fõbb Áramlatok", Budapest, Gondolat, 1987).
2. A única literatura da Europa Centro-Oriental que conseguiu escapar, em três anos, dos ditames do jdanovismo foi a Iugoslávia, devido ao rompimento político com a União Soviética, em 1948.
3. Na Europa Centro-Oriental, é grande o número de poetas-guerrilheiros, cuja obra merece ser lida, devido à importante contribuição que acabaram oferecendo à literatura. Alguns deles sobreviveram; é o caso dos poloneses Rózewicz e Herbert; do macedônio Átzo Chópov (1923-1982) e do sérvio Vasko Popa (1922-1991). Outros tantos desapareceram -de arma em punho ou em campos de concentração-, mortos durante a Segunda Guerra pelas tropas de Hitler e/ou de seus colaboradores, como foi o caso do húngaro Miklós Radnóti (1909-1944); dos poloneses Tadeusz Gajcy (1922-1944) e Krzysztof Baczynski (1921-1944); dos dois participantes da resistência iugoslava, o croata Ivan Goran Kovacic (1922-1944) e o esloveno Karel Destovnik Kajuh (1922-1944), e do macedônio-búlgaro Nikola Váptzarov (1909-1942).

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