São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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A razão poética

FERREIRA GULLAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há mais de 60 anos, em novembro de 1935, morria, em Lisboa, Fernando Pessoa, cuja obra, por sua complexidade e beleza, deu novo sentido e novo peso à literatura de língua portuguesa. Falar desse poeta e dessa obra equivale a mergulhar num atordoante labirinto de espelhos. O que é previsível, quando se lê o que ele mesmo disse em carta a João Gaspar Simões: "O estudo a meu respeito, que peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir". Pode-se entender esse reparo como uma advertência, pertinente, aos críticos que costumam explicar a obra dos escritores por sua biografia. De fato, se em todo autor obra e vida de algum modo se entrelaçam ou se ligam, deve a crítica ter em conta que se trata de realidades diferentes, de linguagens diversas, que não se traduzem uma na outra. Sendo assim, o mesmo fato não terá igual significação na vida como na obra, ou seja, devemos ler a obra como obra e a vida como vida. Sem confundi-las.
No caso de Fernando Pessoa, porém, a dificuldade está na leitura da obra de um autor cuja vida parece se resumir à própria obra e que, ao mesmo tempo, põe em dúvida a cada momento a sua existência como gente e como autor da obra. Mas tampouco o faz de modo definido ou definitivo.
Assim abre diante de nós um labirinto de dúvidas e simulações: "Se alguma vez sou coerente -diz ele-, é apenas como incoerência saída da incoerência"; ou então: "A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação". Noutra ocasião afirma: "Eu sou a sensação minha. Portanto, nem da minha própria existência estou certo".
Se nos detemos a analisar essa última frase, verificamos que ela é carente de lógica: se eu sou uma sensação minha, não posso ter dúvida quanto a minha existência, já que, para haver sensações, é necessário que haja alguém que as tenha. Trata-se, portanto, de um paradoxo. Mas a nossa lógica de pouco ou nada vale para contestar ou definir a alguém que, como Pessoa, nos responde: "O paradoxo não é meu. Sou eu".
E é verdade. Ou deve ser... talvez. Fernando Pessoa parece ter tido, desde sempre, enorme dificuldade em manter-se coerente. Ele confessa: "Todos os meus escritos ficaram inacabados: sempre novos pensamentos se interpunham, associações de idéias extraordinárias e inexcludíveis, de término infinito". Há nele uma espécie de horror ao definido e ao definitivo: "Não posso evitar o ódio que têm meus pensamentos de ir até o fim: a respeito de uma simples coisa, surgem dez mil pensamentos e milhares de interassociações com esses dez mil pensamentos, e careço de vontade de eliminá-los ou detê-los, nem tampouco de reuni-los num pensamento central, onde os seus pormenores sem importância, mas associados, podem se perder. Introduzem-se em mim: não são pensamentos meus, mas pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não me sinto inspirado, deliro".
A coerência impossível
Pode-se deduzir dessa confissão que a impossibilidade de se manter coerente decorre, em Fernando Pessoa, de um lado de sua inteligência extraordinariamente rica e sensível e, de outro, de uma fraqueza ou indecisão fundamental que o impede de eleger a linha mestra do raciocínio e expurgar tudo o que, por mais interessante ou brilhante que seja, não pertença a ela.
Outra hipótese seria a de que ele subestima a coerência lógica em favor do efeito emocional das idéias e porque encontra na própria incoerência uma expressão emocional ou um perverso prazer intelectual. Não se pode esquecer que, entre as múltiplas faces da personalidade de Pessoa, há sem dúvida a de um certo esnobismo intelectual, o esforço para fugir do comum. Ele o diz pela boca de Bernardo Soares, o "autor" do Livro do Desassossego: "Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-me. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou". Se se alega -como poderia fazê-lo o próprio Pessoa- que o que diz Soares, diz Soares, e não ele, Pessoa, podemos também lembrar-lhe outra de suas afirmações: "Só disfarçado é que sou eu". Definir Pessoa é como tentar fixar as imagens de um caleidoscópio em movimento.
Não obstante, nunca se pode descartar, no entendimento desse fenômeno -que se confunde com uma espécie de dispersão da personalidade-, causas verdadeiras, existenciais e até psíquicas, especialmente quando atentamos para afirmações como esta: "O caráter de minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque são pontos definidos. Aflige-me a idéia de que se descubra uma solução para os mais altos e mais nobres problemas de ciência e filosofia; horroriza-me a idéia de que uma coisa qualquer possa ser determinada por Deus ou pelo mundo. Enlouquece-me a idéia de que as coisas mais momentosas possam realizar-se, de que os homens pudessem todos ser felizes um dia, de que se encontrasse uma solução para os males da sociedade". E, após dizê-lo, adverte: "Contudo, não sou mau nem cruel; sou louco e isso dum modo difícil de conceber".
Não nos cabe aqui fazer o diagnóstico médico de Fernando Pessoa. Ele, sim, tenta fazê-lo numa carta a dois psiquiatras franceses, datada de 10 de junho de 1917, em que afirma: "Do ponto de vista psiquiátrico, sou um hístero-neurastênico, mas felizmente minha neuropsicose é bastante fraca". E aduz logo adiante: "Exceto nas coisas intelectuais, onde cheguei a conclusões que tenho como firmes, mudo de opinião dez vezes por dia; só tenho juízo assentado a respeito de coisas em que não haja possibilidade de emoção". E isso porque, segundo ele mesmo admite, "a emotividade excessiva perturba a vontade; a cerebralidade excessiva -a inteligência por demais apaixonada pela análise e pelo raciocínio- esmaga e amesquinha essa vontade que a emoção acaba de perturbar", e acrescenta: "Quero sempre fazer, ao mesmo tempo, três ou quatro coisas diferentes; mas no fundo não só não faço, mas não quero mesmo fazer nenhuma delas. A ação pesa sobre mim como uma danação: agir, para mim, é violentar-me".
Se Pessoa era ou não um "hístero-neurastênico", não importa aqui. No trecho citado, interessam-nos mais as referências à "cerebralidade excessiva -a inteligência por demais apaixonada pela análise e pelo raciocínio"- e à impossibilidade de agir. Esses dados podem explicar sua tendência a negar a realidade concreta do mundo objetivo, o estado de permanente desencanto diante da vida e da criação de personalidades fictícias nas quais projeta a vida que ele próprio não consegue viver.
Homossexualismo irrealizado
Mas há um outro dado a acrescentar a esse quebra-cabeças: o homossexualismo irrealizado de Fernando Pessoa. Mais uma vez recorremos a suas próprias palavras: "Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação -a inteligência e a vontade, que é a inteligência do impulso- são de homem". Adiante ele diz: "Reconheço sem ilusão a natureza do fenômeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no espírito". Mas vejamos o que se segue: "Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar".
Esse texto deixa claro a drástica reprovação de Pessoa à prática do homossexualismo (que ele considera humilhante), assim como o temor de que, contra a sua vontade, esse impulso lhe descesse ao corpo e o submetesse. "Somos vários desta espécie, pela história abaixo", afirma, referindo-se em seguida a Shakespeare e Rousseau, para sublimar seu receio "da descida ao corpo dessa inversão do espírito", "como nesses dois desceu". Seria descabido imaginar que, diante dessa ameaça, diante desse corpo que poderia a qualquer momento traí-lo, que Pessoa decidisse não viver, reduzir sua vida à vida da inteligência (sua parte masculina), e assim escapar à desgraçada possibilidade de tornar-se um homossexual? Não seria essa divisão interior -um homem e uma mulher na mesma pessoa- o início de sua despersonalização, da divisão do eu e ao mesmo tempo da invenção de outras personalidades, em lugar da sua própria, que lhe era, por pervertida, inaceitável? Por outro lado, a necessidade de ocultar esse impulso perverso não seria a primeira simulação que o levaria a tantas outras simulações?
Podemos responder sim ou não a essas hipóteses. Mas mesmo que respondamos sim, não esgotaríamos com isso o mistério da obra poética de Fernando Pessoa nem o enigma de sua personalidade, que dessa obra não se separa, porque, qualquer que seja a causa que determina o nascimento de seus poemas e a criação do seus heterônimos, a significação poética e o valor literário de sua obra pairam acima das explicações.
Não vamos, portanto, indagar agora pela origem de seus heterônimos, mas tentar compreender o que são eles. Num texto conhecido como "Apresentação dos Heterônimos" e que foi escrito como prefácio a uma projetada edição de suas obras, em 1930, possivelmente, Pessoa afirma: "O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é, embora parecido" (...) "Afirmar que esses homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem -não pode fazê-lo o autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade."
O poeta dramático
Essa alusão a Shakespeare não é fortuita, por várias razões, mas especialmente porque Pessoa se entende como um "poeta dramático" e seus heterônimos como equivalentes a personagens teatrais. É bastante conhecido o trecho de sua carta a João Gaspar Simões em que ele se define como tal: "O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Vôo outro -eis tudo".
Em consequência disso, diz ele, "não há que buscar em qualquer deles (dos heterônimos) idéias ou sentimentos meus, pois que muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler". Argumenta com o exemplo do poema oitavo do "Guardador de Rebanhos", "que escrevi com sobressalto e repugnância", afirma, "pois que ali Caeiro usa de blasfêmia infantil e antiespiritualismo, quando nem uso de blasfêmia nem sou antiespiritualista". E acrescenta: "Alberto Caeiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de lady Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, nem era mulher nem, que se saiba, hístero-epilético, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito, porque elas são fictícias e não porque estão num drama".
Acredito que, para melhor entendermos o fenômeno dos heterônimos, devemos examinar esta tese de Fernando Pessoa, na qual ele insiste repetidas vezes e a que confere indiscutível importância, a ponto de considerá-la a chave para o entendimento de toda a sua obra.

Continua à pág. 5-7

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