São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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Juliette Binoche volta a sofrer no cinema

LÚCIA MARTINS

Recém-apresentada pela Lancôme como a dona de um dos rostos mais bonitos do mundo, a atriz francesa interpreta em seu último filme, "The English Patient", uma efermeira do pós-guerra
Em menos de 15 anos de carreira Juliette Binoche, 32, coleciona alguns trunfos: contracenou com Daniel Day-Lewis e Jeremy Irons, foi a musa do Krzysztof Kieslowski e namora Olivier Martinez, o Brad Pitt francês.
Para completar, a atriz francesa está dividindo com a brasileira Cristiana Reale o posto de modelo de rosto mais bonito do mundo patrocinado pela empresa de cosméticos Lancôme, cargo antes ocupado por Isabela Rossellini.
Analisando o currículo de Binoche e olhando para ela de perto dá para entender como ela conseguiu colecionar tantos sucessos em tão pouco tempo.
Talento à parte, nada como trabalhar com Jean-Luc Godard ("Je Vous Salue Marie", 85), Philip Kaufman ("A Insustentável Leveza do Ser", 88), Leos Carax ("Os Amantes da Ponte Neuf", 92), Louis Malle ("Perdas e Danos", 92) e com o próprio Kieslowski ("A Liberdade é Azul", 93).
"Quando pensei em ser atriz, nunca imaginei que fosse fazer filmes", disse Binoche à Revista da Folha, no lançamento de seu último filme, "The English Patient", há duas semanas em Londres.
Carreira de sofrimentos
No filme, Binoche é uma enfermeira que se fecha em um mosteiro na Itália para cuidar de um homem mutilado e tentar refazer sua vida após perder o namorado e a melhor amiga na Segunda Guerra Mundial.
Mais um personagem com história trágica para a coleção de Binoche. Ela já foi uma mulher que perde o marido e o filho em "A Liberdade é Azul", uma noiva que se apaixona pelo pai de seu futuro marido e destrói a vida dos dois em "Perdas e Danos" e viveu um romance do tipo sofredor em "A Insustentável Leveza do Ser".
"Meus filmes sempre falam de como se recuperar, como esquecer ou não uma perda. Não me acho parecida com minhas personagens. Claro que já fui elas, mas estou sempre mudando", diz.
Conversar com Binoche, no entanto, confirma a imagem de mulher discreta, distante e até um pouco triste, que marcou sua carreira no cinema. Ela é reservada, faz longas pausas enquanto fala, se recusa a comentar sua vida particular e participa de uma associação de ajuda a crianças abandonadas.
"Não tive nenhuma experiência ruim na minha vida. Mas acho que a sensação de perda todos já sentiram", diz.
Foi essa sensação, que passa nas telas, que levou também o diretor de "The English Patient", Anthony Minghella, a escolher Juliette para seu novo filme: "Quando li o livro, Juliette foi a primeira atriz que pensei para ser a Hana. Tinha de ser alguém triste. Mas acho que a vontade louca de arranjar um motivo para ficar na mesma sala que ela contou na escolha".
Aliás, esse é outro de seus trunfos. Nem é preciso falar da beleza de Juliette Binoche. Qualquer mulher de 30 anos que olha para uma propaganda Lancôme e lembra que ela já tem 32, fica pelo menos com vontade de entrar na primeira loja e comprar alguns dos cremes da marca francesa.
Leia a seguir a entrevista que Juliette Binoche concedeu à Revista da Folha sobre seu novo filme e sua mais nova ocupação: ajudar crianças carentes espalhadas pelo mundo.

Quando você leu o livro "The English Patient", de Michael Ondaatje, em que o filme é baseado, você gostou imediatamente?
Não deu para gostar imediatamente porque, como li em inglês, foi muito difícil de entender (durante a entrevista, Juliette pede desculpas várias vezes porque diz que seu inglês não é muito bom). Tive de ler o roteiro ao mesmo tempo para entender. Eu estava procurando por Hana, mas, às vezes, me perdia porque havia tantas histórias dentro de outras histórias. Depois, eu li o livro em francês e adorei.
Do que você mais gostou no filme?
Tantas coisas... Hana perde o namorado e a melhor amiga. Toda a história é sobre como reconstruir a vida. Ela vai para um mosteiro na Itália. É uma mulher muito independente, jovem, que tem um forte instinto de sobrevivência. O que eu gosto nesse filme é que você vê que ela vai ficando mais leve e mais leve, se transformando. E, no fim, volta a ter esperanças. Ela pode até começar uma nova vida. E como o filósofo disse: "Quando você tem 18 anos você parece jovem, mas só o tempo deixa você mais jovem". Acredito que com experiências verdadeiras você fica mais jovem.
Há alguma semelhança entre Hana e você?
Deve ter, mas é difícil dizer o quê. Quando fui jantar com o Anthony (Minghella, o diretor), ele me disse: "Você é tão diferente dos filmes que você faz" (risos). Isso é ser uma atriz. Você é a pessoa que está interpretando. Você usa o seu corpo, seus sentimentos, suas experiências para ser outra pessoa. Quem sou eu? Não sei. Estou mudando o tempo todo. Como o vento, estou sendo levada para diferentes países e lugares. É difícil dizer que sou a Hana, Tereza, Julie, claro que fui minhas personagens e sou. Mas nem sempre...
Por que você decidiu fazer agora esse filme?
Quando escolho um filme, penso no meu crescimento pessoal, em experiências. Esse, por exemplo, fala de morte, que é quase um segredo. Um tabu nos dias de hoje, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Antes as pessoas morriam em casa. Acho que falar da morte era um desafio para mim.
Alguns de seus personagens tiveram trágicas experiências...
Infelizmente (risos), eu não tive.
Onde você busca subsídios para fazer os personagens?
Não ter experiências ruins não quer dizer nada porque alguns sentimentos todos temos. Por exemplo, a sensação de ser abandonada todo mundo já sentiu, mesmo que tenha sido o abandono sofrido por ter sido tirado de dentro da barriga de sua mãe no nascimento. E os filmes que fiz, em sua maioria, falam sobre como se recuperar, como aceitar ou não aceitar uma perda. Alguma vez na vida, todo mundo já pensou nessas questões.
Então você diria que Hana não é diferente de suas outras personagens?
Não. Porque Hana sente a perda de uma maneira diferente e reage a ela também de outra forma. A decisão de ir para o mosteiro, cuidar do paciente sabendo que ele iria morrer. Sua ligação com o paciente é tão intensa que, no fim, ela aceita matá-lo. É um momento em que ela entende tão bem o que ele sente que faz o que tem de fazer.
Você seria outra coisa além de atriz, uma enfermeira, por exemplo, como Hana?
Poderia dizer que sim, mas, ao mesmo tempo, não dá para afirmar porque as coisas acontecem sem que você tenha domínio delas. Sempre quis ser atriz. Comecei quando tinha 17, mas nunca imaginei que ia fazer filmes.
Acho que tenho algumas características para ser enfermeira, mas, ao mesmo tempo, me lembro de que, quando meu namorado está doente e pede para que eu o leve ao médico, sempre digo: "Vá sozinho, você é adulto". Poderia ser enfermeira, mas, sei lá, as pessoas ficam doentes tão fácil (risos).
Hoje você se considera feliz e realizada? Você está namorando há muito tempo?
Sou feliz, mas prefiro não comentar a minha vida pessoal.
Além de atriz, você tem alguma outra atividade?
Faço parte de um grupo de ajuda a crianças abandonadas e crianças órfãs por causa da guerra, a Aspeca. Existe na Bélgica e na Suíça.
Sou a madrinha da associação. Já tinha sido madrinha de três crianças durante três anos. Toda essa questão de crianças me toca. Havia muito tempo que eu queria fazer alguma coisa. E agora estando na Lancôme tive essa chance.
Chance de quê?
De viajar muito... Fui ao Camboja na semana passada (segunda semana de outubro) e vi uma criança que estava com um problema na pele grave e era tão magra. Fiquei tão deprimida. Faltava tratamento adequado. Não podemos deixar as crianças morrerem.
O Camboja é um país tão bonito, com uma população tão jovem e pobre. Havia um homem muito magro pedindo dinheiro. Ele começou a chorar e eu disse: "Meu Deus, ele está sofrendo". Mas, na verdade, ele queria dinheiro. Depois que dei o dinheiro, ele ficou rindo e foi embora.
Por que você escolheu ajudar crianças?
Porque há tantas violências contra as crianças. Quando fiquei sabendo o que estava acontecendo na Bélgica (várias meninas foram mortas após terem sido estupradas), fiquei com tanta raiva. Foi tão absurdo.
Nunca assisto televisão, para mim televisão é a religião dos dias de hoje, mas um dia, por acaso, estava assistindo e vi o que estava acontecendo. Fiquei enlouquecida.
Você pretende participar de algum movimento contra a pedofilia?
Devo viajar para a Bélgica para participar de um debate sobre o assunto, mas minha principal preocupação é com as crianças abandonadas. E há tantas... Quando eu era criança, costumava ficar sozinha brincando. Todas as minhas bonecas eram bonecas velhas das minhas primas porque minha mãe não tinha dinheiro para comprar novas. Tinha uma sem braço, outra sem olho.
Lembro de inventar histórias de que elas estavam em uma rua, aparecia alguém, levava elas para casa, dava comida, colocava roupas novas, cuidava delas. Acho que o que faço hoje tem a ver com aquelas histórias.
Lembro de sonhar em ter dinheiro para dar para as crianças e agora tenho. Achava que podia salvar o mundo, mas não acho mais (risos).

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