São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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Segmentação reinventa a televisão

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A televisão, dizia Groucho Marx, é algo profundamente educativo: "cada vez que alguém a liga na sala, vou para o quarto ler um livro".
O trecho acima, acredite, consta de um livro recente altamente apologético em relação ao futuro da TV. Seu título é "A Nova Televisão - Desmassificação e o Impasse das Grandes Redes" (Relume Dumará). O autor é Nelson Hoineff, jornalista, diretor de TV, um dos grandes especialistas do país em TV por assinatura.
No deserto de discussão séria sobre o assunto, o livro é um oásis. Informado, acessível ao leigo, escrito em prosa clara e bem humorada, embora um pouco inflacionada demais por siglas e números, "A Nova Televisão" nos obriga a pensar, mesmo que seja para discordar do autor. E Hoineff é, no mínimo, um bom adversário.
Qual a tese central que o autor compra e tenta nos vender? O título já a indica: a TV, tal como a conhecemos, está com os dias contados. No lugar da TV aberta, genérica, massificada e burra está nascendo uma TV segmentada, temática, democrática e apta a reencontrar individualidades inteligentes.
A origem disso, diz Hoineff, está nas novas tecnologias de distribuição de sinais e no desenvolvimento dos processos e digitalização. O desafio, segue o autor, é localizar o impacto dessa revolução técnica em curso sobre o conteúdo da TV e sobre a nova relação que ela manterá com o público diversificado.
Hoineff é enfático: "a TV enquanto veículo está sendo reinventada. É provável que dentro de cem anos o mundo possa estar comemorando o centenário de uma forma de expressão tão completa, rica e inteligente como nunca antes o ser humano ouviu falar".
Feito esse resumo sumário do livro, há razões de sobra para se desconfiar que existe um abismo entre esse negócio da China chamado TV interativa (segundo Hoineff, ela deve movimentar mais de US$ 25 bilhões até a virada do milênio), e os efeitos supostamente "iluministas" e desmassificantes que ele teria sobre a humanidade.
Não é preciso nem ser um dinossauro de esquerda para achar que o autor é otimista demais. Discordemos, então, apenas em termos liberais, respeitando o esperanto da época. Um liberal convicto poderia dizer que essa nova TV manda para o lixo duas noções que lhe são caras: concorrência e espaço público. A primeira está relacionada ao liberalismo econômico; a segunda, à democracia política.
Como se sabe, todas as redes de cabo dos EUA são controladas por apenas cinco megacorporações (TCI, Time Warner, Viacom, Cablevision/NBC, Disney/ABC/Hearst). Impossível falar então em concorrência diante de tamanha concentração, algo inédito na história do capitalismo.
Só que o efeito dessa concentração sobre o espectador é uma segmentação brutal, também jamais vista, obtida graças à infinidade de canais que lhe são oferecidos.
Ocorre que esse novo espectador ultrassegmentado é, antes de tudo, o protótipo do consumidor, nunca um cidadão. Seguindo os passos da Internet, essa TV irá oferecer ao novo telemaníaco atomizado, cada vez mais fechado em seu universo privado, feito uma mônada, opções de entretenimento tão especializadas quanto ele desejar. Teremos provavelmente um canal destinado só para a "associação dos amigos do urso polar", outro para a "sociedade internacional dos jogadores de ioiô", um terceiro para o "clube secreto dos amigos da lingerie" etc., etc.
Será a vingança definitiva do consumidor contra o cidadão, que poderá então "surfar pelo vídeo" do nada a lugar nenhum, como nos ensina hoje a Internet.
Que nos seja permitida, para concluir, uma pequena homenagem à paleontologia. Como dizia Theodor Adorno, esse pai dos dinossauros, inventor do arcaico conceito de indústria cultural, "cada consumidor deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com seu 'level', previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo. O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente diferenciados acabam por se revelar sempre a mesma coisa. A diferença entre as séries Chrysler e General Motors é ilusória, como já sabe toda criança interessada em modelos de automóveis".
O texto é de 1947. Com o perdão dos arautos do neo-iluminismo televisivo, a profecia do velho dinossauro alemão já se realizou.

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