São Paulo, terça-feira, 12 de novembro de 1996
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Vida de Henfil dá um livro

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Minha vida dá um livro." Para Henrique de Souza Filho -o Henriquinho, Henfa, Tuneba ou simplesmente Henfil-, a expressão cai como uma luva.
É publicado o livro "O Rebelde do Traço - A Vida de Henfil", de Dênis de Moraes, biografia do maior cartunista brasileiro. E não poderia ser diferente: o livro faz rir e chorar.
Henfil, criador de personagens inesquecíveis como Graúna, a primeira feminista xiita do país, Fradinhos e Ubaldo o Paranóico, era ele próprio um personagem -esteve presente em todos os momentos relevantes da história recente.
Foi da JEC (Juventude Estudantil Católica), nutriu simpatias pela AP (Ação Popular, organização de esquerda que combatia o regime militar, fundada pelo irmão, Betinho), exilou-se nos anos 70 e voltou para respirar ares da abertura política e lutar pela Anistia.
Foi um dos signatários da fundação do PT e ilustrou dezenas de panfletos voltados para a mobilização dos operários do ABC.
Esteve presente na fundação do Pasquim -chegou a dirigir a Codecri, empresa que administrava o tablóide. Publicou trabalhos na maioria dos jornais e revistas do Brasil.
Durante anos, ilustrou a última página da "Isto É", leitura obrigatória dos detentores do poder, entre eles Golbery do Couto e Silva, ideólogo do regime.
Foi o único brasileiro a ser aceito pelo mais poderoso sindicato norte-americano de cartunistas, UPS (Universal Press Syndicate), que controla a publicação de tiras nos jornais dos EUA. No final dos anos 70, montou um apartamento, em SP, levando para morar com ele Nílson e Glauco. Seu trabalho voltou-se exclusivamente para a crítica política.
O "Robin Hood" brasileiro arrumava empregos para amigos, enviava dinheiro para exilados, hospedava Deus e o mundo, visitava doentes, trabalhava de graça para causas que compartilhava, militando 24 horas do dia.
Apesar do sucesso entre as mulheres, incluindo Elis Regina, Henfil jogou âncora em Lúcia Lara, garota de 15 anos (20 anos a menos que ele), a terceira mulher, que o acompanhou até sua morte.
Hemofílico, acabou numa das muitas transfusões de sangue contaminado pelo vírus HIV. Henfil estava com Aids quando pouco se sabia sobre a doença. Morreu em 88, debilitado mentalmente. Em toda minha vida, nunca vi ninguém sofrer tanto devido à Aids como meu irmão", disse Betinho, em depoimento para o livro.
O começo Henfil nasceu em 1944. É de Minas Gerais, como Lucas Mendes, Frei Beto, Ivan Ângelo, Klaus Viana, Fernando Gabeira, Otto Lara Resende, Ziraldo, Vinícius Caldeira Brant, Bolívar Lamounier, Milton Nascimento e Ezequiel Neves, seus amigos.
Seu pai era padeiro e dono do único cinema de Três Pontas. Sua mãe, dona Maria, virou personagem pública, com a foto sorridente ilustrando as colunas do filho.
A hemofilia, doença pouco conhecida na época, em quatro dos oito filhos, foi preponderante para os Souza se mudarem para Belo Horizonte, cidade que respirava política e cultura.
Henriquinho, ciente dos cuidados que a doença exigia, não chegou a participar das travessuras dos colegas. Desenhar era a saída.
Em BH, seu pai ficou sócio de uma funerária. O garoto Henfil brincava entre caixões. Vem daí a morbidez e cinismo, marca registrada dos personagens de Henfil?
Seu irmão mais velho, Betinho, também hemofílico, ficou num quarto isolado no fundo do quintal por três anos; os livros eram sua única companhia. Nascia o intelectual Betinho, que acabou influenciando Henfil.
Na década de 50, houve a explosão da esquerda católica no Brasil, pensamento trazido por dominicanos franceses, apoiados em textos de Emmanuel Mounier e Teilhard Chardin. Henfil e Betinho logo se engajaram no movimento. Daí nasceram os Fradinhos (Baixinho e Cumprido, com "u"), inspirados em frades dominicanos.
Betinho projetou-se como liderança da esquerda católica e fundou a AP, da qual foi secretário-geral. Os primeiros trabalhos de Henfil: ilustrar cartazes e folhetos dos estudantes..
Foi o diretor da revista "Alterosa", Roberto Drummond, quem lhe deu o primeiro emprego como cartunista, sugerindo o nome Henfil. "Desenhista não pode ter nome comum", teria dito Drummond.
O sucesso Os Fradinhos foram publicados em julho de 64 na "Alterosa", revista esvaziada pelos rumos do militarismo. Depois, no "Diário de Minas". Começou o estilo diabólico de crítica dos costumes que fez eco pelo Brasil.
Enquanto Betinho vai a Cuba para participar da Olas (Organização Latino-americana de Solidariedade, que centraliza as guerrilhas do continente), Henfil conhece Jaguar e Ziraldo, no Rio.
Em 67, foi convidado para trabalhar no "Jornal dos Sports", onde cria os personagens que viraram símbolo das torcidas cariocas (Urubu para os flamenguistas, Pó de Arroz para os tricolores e Bacalhau para os vascaínos).
Muitos urubus e quilos de pó de arroz foram lançados no Maracanã, em dia de Fla-Flu.
É no "Pasquim", tablóide semanal que chegou a vender mais de 200 mil exemplares, que Henfil encontrou a consagração, dividindo espaço com Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo, Paulo Francis, Tarso de Castro e outros.
Rodou o Brasil a tira em que Baixinho pede para Cumprido abrir a boca para uma surpresa. Manda Cumprido adivinhar. "Fritas à francesa?", perguntava Cumprido. "Errou, casquinha de leproso", respondia Baixinho.
Sucesso absoluto, passou a colaborar para o Caderno B, do "Jornal do Brasil", com novos personagens: Zeferino, Graúna e Bode Orfelana, o aguerrido trio da caatinga. E publicou ainda seus personagens na "Radim Mensal", revista de 70 mil de tiragem.
O país em chamas Nos anos de repressão, Betinho teve de se exilar. Sua cunhada, Gilse Maria, foi torturada. A redação do "Pasquim" foi encarcerada. A censura invadiu as redações.
A Henfil, que tinha ligações com a AP e o PC do B, não restava outra saída, a não ser mudar para Nova York, onde encontrou guarida em Paulo Francis e Lucas Mendes.
Mesmo sem saber uma palavra em inglês, Henfil foi aceito na UPS, que fez de tudo para publicar suas tiras em jornais americanos, como "Chicago Tribune" e "Philadelphia Inquirer".
Mas leitores indignados exigiram a exclusão das histórias "sick" (doente) dos dois frades pervertidos -em Fort Wayne, chegaram a chamar Baixinho de "anticristo antiamericano".
Em 75, o governo militar retirou a censura, na véspera da edição 300 do "Pasquim". Geisel chamava os brasileiros de volta, prometendo uma abertura gradual. Glauber Rocha foi o primeiro a aderir. Henfil, desconfiado, voltou ao Brasil. "Afinal, este é o meu país, minha gente e minha polícia."
Travou polêmicas com "a patrulha odara" Caetano Veloso e Gilberto Gil; chamou Glauber de "oportunista desvairado". Foi apontado por Cacá Diegues como expoente do grupo conhecido como "patrulheiros ideológicos".
Sua militância não acaba: recepciona os anistiados, mostra a cara nos comícios pelas Diretas, participa das campanhas do PT, até ser contaminado pelo HIV.
Henfil teve um fim melancólico. Não aceitava nem falava sobre a Aids. Só nos últimos meses admitiu ser portador do vírus, depois de tentar um tratamento energético com Tomaz Green Morton, que virou seu guru. Foi aos poucos perdendo a consciência. Nem chegou a usar o AZT.
Morreu ao lado de Betinho, devendo a última piada. "A gaiola abriu e Henfil se foi", escreveu Dênis de Moraes.

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