São Paulo, quarta-feira, 13 de novembro de 1996
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Lula, o Aposentado

ELIO GASPARI

Quando o príncipe de Talleyrand soube que Napoleão Bonaparte mandara matar o Duque d'Enghien, remoto pretendente ao trono da França, fez um curto comentário:
-É pior que um crime. É um erro.
Foi isso que Luís Inácio Lula da Silva fez quando assinou a papelada do INSS que lhe dá uma aposentadoria especial de R$ 2.195 por mês. Embarcou no navio-fantasma das aposentadorias especiais das vítimas da ditadura.
Na sua origem, a idéia da reparação era simples e injusta. Amparava os funcionários públicos postos para fora de seus empregos por perseguição política e deixava ao sol os trabalhadores que perderam seus empregos na iniciativa privada.
O caso
Uma interpretação da lei da anistia reparou o erro e permitiu que os perseguidos buscassem seus direitos junto ao INSS, que não paga mais que R$ 995 aos seus clientes. Criou-se um sistema baseado quase sempre no pagamento de uma aposentadoria equivalente ao último salário. Essa foi a norma seguida no processo de Lula.
Em alguns casos, como o das pessoas que saíram presas dos empregos ou caíram na clandestinidade, foi fácil demonstrar o dano causado pela repressão.
Também era possível provar o truncamento de uma carreira, mas aos poucos os processos foram contaminados por maracutaias. No Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro alguns espertalhões falsificaram a História, as biografias e até mesmo os papéis. A conta já estaria em mais de 2.000 aposentadorias especiais.
Lula requereu a sua aos 50 anos. Começou a trabalhar aos 12, como entregador de tinturaria. Teve a carteira assinada aos 14, na Fábrica de Parafusos Marte. (Uma prensa decepou-lhe um dedo mínimo antes que completasse 18 anos.) Em 1976 foi trabalhar nas Indústrias Villares, de onde saiu para a militância sindical e política.
Fazendo-se as contas, Lula poderia ter se aposentado aos 49 anos, quando completou 35 de batente com carimbo na carteira. Com quanto? Com os R$ 995 que o INSS paga ao que ele chama de "peãozada".
O erro
Ele preferiu o caminho da aposentadoria especial dos perseguidos políticos. Perseguido político ele foi: o Serviço Nacional de Informações grampeava-lhe as conversas, prenderam-no por 31 dias em 1980 e proibiram-no de exercer militância sindical. Seu caso, contudo, acabou em absolvição. É aí que a porca torce o rabo.
Ganhou uma aposentadoria equivalente ao último salário que teve na Villares. Quando completar 70 anos, terá recebido algo mais que R$ 500 mil por 31 dias de prisão. São R$ 16 mil por dia de cana.
Como nem todos os trabalhadores da Villares que se aposentam com R$ 995 lutaram contra a ditadura, seria razoável que um deles, tendo sido perseguido, ganhasse mais que a "peãozada". E aí a porca torce o rabo novamente. Lula e a ditadura bateram de frente na greve de 1980, quando os metalúrgicos do ABC caíram numa armadilha montada pelo governo.
Segundo um artigo publicado à época na revista Debate, ela provocou 13 mil demissões. metalúrgico com carteira indicando baixa nos meses seguintes ao movimento só conseguia emprego por milagre. Nenhum deles requereu aposentadoria especial e, se requerer, leva um passa-fora.
Nem os operários da Villares, nem os trabalhadores demitidos por causa das greves conseguiram ir para casa com o salário integral. Só oito dirigentes do sindicato, entre os quais Lula.
(É necessário registrar que a ditadura não estorvou a vida do operário Luís Inácio da Silva, mas a do Lula dirigente sindical e partidário, que mais tarde viria a ser candidato a presidente da República. Prova disso está no fato de ele não ter retornado à metalurgia depois de se profissionalizar como sindicalista.)
O exemplo
A "peãozada" que perdeu o emprego nas greves de 1979 e 1980 está hoje espalhada pelo Brasil, contando histórias de dias memoráveis. Não se sabe como essa gente olhará para o Lula-Aposentado, mas é certo que a cada cheque de R$ 2.195 que ele põe no bolso, diferencia-se cruelmente dos colegas que ficaram com R$ 995.
Com a palavra um deles, Juno Rodrigues Silvio, o Topo Gigio, ponteador da Karman-Ghia, demitido na greve de 1979:
- A gente andava com panfleto debaixo do casaco. Era uma época em que sindicato não tinha carro de som e dirigente não tinha motorista. A polícia foi me procurar em casa e até hoje minhas filhas não gostam de ver filmes com essas coisas. Na minha firma mandaram embora uns 20 ou 30. Eu fiquei uns seis meses sem serviço, carregando areia, pintando casas e ajudando a patroa a vender iogurte na rua. Depois arrumei um emprego no serviço de profilaxia da raiva de Santo André e fui matar ratos. Fiquei dois anos nisso, fui para Diadema trabalhar na mesma coisa. Vendi minha casa e abri um restaurante, o Gigio (Avenida Cristiano Angelo, 930, Assunção, São Bernardo) onde sirvo a melhor chuleta do Brasil. O Lula é um herói, é o maior líder de trabalhadores que o Brasil já teve. O que ele estiver ganhando é certo, porque fez por merecer. Eu não vou atrás dessa aposentadoria, mas acho que ele fez bem.
Lula defendeu sua aposentadoria, explicando que "ela é legítima, justa, porque é uma conquista dos anistiados".
Conquista dos anistiados não é. É conquista da sociedade, em benefício dos perseguidos da ditadura. Legal, sem dúvida. Legítima, talvez. Justa, nem pensar, porque seu mecanismo não beneficia todos os trabalhadores nem todos os perseguidos.
(A aposentadoria de Lula tramitou em pouco mais de um ano. A indenização plena da viúva do metalúrgico Manuel Fiel Filho, assassinado no Doi-Codi em 1976, completará 21 anos de tramitação em janeiro próximo.)
Se fosse conquista justa e legítima, talvez Lula a tivesse comemorado num ato público, como fazem as famílias daqueles que a ditadura assassinou e agora está indenizando.

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