São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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O olho fora do lugar

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Os paulistanos, como os brasileiros das grandes cidades, já aprenderam a considerar como ocorrências de uma outra dimensão, de um mundo paralelo, de um espaço-tempo virtual, a presença de crianças estendidas nas calçadas, mendigos morando dentro de viadutos ou famílias esmolando nos sinais de trânsito.
O festival de horrores da desigualdade social passou a ter o mesmo remoto lugar da fome na África: algo bastante desagradável, mas que, afinal, está fora do meu alcance.
Talvez exausto com tantos sobressaltos causados pelas interferências da esfera pública em sua vida, o brasileiro integrado aproveita -agora que a face econômica do país vai-se modernizando e mantém-se civilizadamente estável- para, muito justamente, relaxar.
É hora de cuidar da vida, viajar, ir para as "oropas" e aproveitar as delícias do mercado. Dar-se, enfim, o direito a uma existência normal e menos atormentada.
O mergulho na esfera privada é, para alguns, uma tática existencial consciente. Para esses escafandristas do individualismo, o drama da exclusão incomoda, mas fica na geladeira.
Será enfrentado um dia, mais para a frente, quando as coisas melhorarem. E talvez, até, eu ainda faça alguma coisa para ajudar.
Para outros, o problema simplesmente não importa. Dane-se.
Todos, entretanto, parecemos desenvolver em comum, nesse país de sociedades paralelas, uma fabulosa faculdade de seleção ótica -só ver aquilo que interessa.
Aperfeiçoamos olhos seletivos, que se movem pelas cidades sempre "deletando" o incômodo e registrando aquilo que nos identificaria com os países mais ricos e civilizados.
Queremos ver coisas -um prédio, uma porta, um corte de cabelo, um automóvel, um ambiente- que se pareçam com Nova York, Milão, Los Angeles.
Em São Paulo, uma paisagem útil para esse exercício de cinematografia transcendental é a região da avenida Berrini, na Marginal do rio Pinheiros.
Ali, no novo eixo do business paulistano, erguem-se edifícios (pós) moderníssimos, espelhados, limpos, maravilhosos. Andar por aquela área, olhando para cima, é igual estar em Tóquio.
Que o olho seletivo não estacione nas favelas da região é natural -faz parte dessa estratégia ótica do neoliberalismo tupi.
Não vou fazer o papel, aqui, de chato e ficar lembrando o óbvio: ao lado da moderna e reluzente riqueza mora a feia miséria.
"Deletemos", pois, a turba excluída. Pronto. O que continua a incomodar naquela paisagem? O que não monta?
São coisas mais simples, mas igualmente reveladoras do lugar em que vivemos. Detalhes cuja presença basta para quebrar o pacto ficcional entre o observador e a cena fantasiosamente observada.
Refiro-me aos prosaicos pés de mamona, aos pneus velhos, às latas de óleo enferrujadas e aos cavalos que pastam sonolenta e solenemente no matagal que se estende ao longo do caudaloso, viscoso e imundo rio, com os arranha-céus de pano de fundo.
Não há imaginação e olhar seletivo que resista.

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