São Paulo, sexta-feira, 22 de novembro de 1996
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Fernando Morais expulsa os soviéticos de "A Ilha"

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

A nova empreitada de Fernando Morais é uma volta às origens. O jornalista mineiro está escrevendo sobre Cuba -exatamente como fez há duas décadas, quando ninguém imaginava que se tornaria um fenômeno editorial.
Em 1975, com 29 anos, passou dois meses entre as fronteiras de Fidel Castro. Chegou em 1º de janeiro e saiu em 8 de março. A viagem tinha ares de façanha.
À época, auge da linha dura brasileira, Cuba era Marte. Pouco se sabia sobre o país comunista. As escassas informações que pipocavam na grande imprensa e nos jornais alternativos amargavam o ranço da militância: ou Fidel aparecia como deus ou como o diabo.
Morais quis tirar a história a limpo. Seguiu para o Caribe "com o máximo de isenção possível" e retornou com uma reportagem.
Publicou-a em 1976, pela editora Alfa-Omega, sob o título de "A Ilha". O livro de 200 páginas surpreendeu. Os 3.000 exemplares da primeira edição se esgotaram na noite de autógrafos.
Fundo falso
Com linguagem acessível e poucos adjetivos, "A Ilha" narrava o cotidiano dos cubanos e traçava o perfil político-econômico do país.
Tratava de educação, saúde, reforma agrária, empregos, mulheres, drogas, prostituição, esportes.
Revelava, por exemplo, que na Cuba revolucionária os carregadores de bagagem não aceitavam gorjetas, as farmácias vendiam pílulas anticoncepcionais, as meninas usavam minissaias e expressões russas como "tovarich" (camarada) já contaminavam o espanhol que se falava pelas ruas.
"Tudo que se diz da ilha, de bem ou de mal, parece vir com um fundo falso, feito mala de contrabandista. Perde-se de tal forma contato com a simplicidade que esta (...) fica insólita. A reportagem de Morais é cristalina. Um diário. Um olho de câmera de cinema aberto sobre um tema", escreveu Antonio Callado no prefácio do livro.
Se a primeira edição acabou em uma noite, as demais acompanharam o ritmo. "A Ilha" -hoje fora de catálogo- vendeu um total de 265 mil exemplares.
Foi um marco. Naquele tempo, obras de não-ficção dificilmente viravam best sellers.
O próprio Morais sabia disso. Seis anos antes, em 1970, lançara seu primeiro livro de reportagem, "Transamazônica", pela editora Brasiliense. Conseguiu vender 25 mil exemplares e se considerou um felizardo.
Sonhos
Para o editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, "A Ilha" é o emblema de uma geração. "Percorrendo os meandros do socialismo, iluminando um país quase mítico, o livro punha em revista os sonhos de toda uma época."
Sonhos que, agora, Schwarcz deseja "recolocar no lugar". Partiu do editor a idéia de enviar Morais novamente para Cuba.
A Companhia pretende lançar, no primeiro semestre de 97, uma versão atualizada de "A Ilha".
O jornalista retornou em junho às terras de Fidel com a missão de mostrar como os cubanos sobreviveram à dissolução do bloco soviético e como enfrentam as sanções impostas pelos Estados Unidos.
"Mais uma vez, tentarei escrever uma reportagem comportamental, sem deixar de lado questões políticas e econômicas", explica Morais.
O escritor, dispensável dizer, já não é o mesmo de duas décadas atrás. Em 1975, viajou como jornalista da "Visão" (a revista, no entanto, nunca publicou o texto). Declarava-se simpatizante comunista, embora não participasse de nenhuma organização.
Hoje, com 50 anos e duas biografias de sucesso no currículo ("Olga" e "Chatô"), vive de direitos autorais.
É membro do diretório estadual do PMDB, apoiou Erundina nas eleições paulistanas e doou dinheiro à campanha petista. Antes, ligou para o ex-governador Orestes Quércia, avisando. "Temos uma relação fraterna", define.
Pelo telefone
Mal desembarcou em Cuba, sentiu o sopro dos novos tempos. Há duas décadas, o táxi que o levou do aeroporto para o centro de Havana era um Ford americano dos anos 50. Agora, pegou um Mazda japonês, modelo 96.
Na viagem de junho, totalmente financiada pela Companhia das Letras, ficou em um cinco estrelas da rede espanhola Sol Meliá.
Entrou no hotel às 9h. Seis horas depois, já conseguia plugar seu notebook à Internet.
Em um mês, conversou com dezenas de pessoas nas ruas e com 29 personalidades -entre políticos, economistas e investidores estrangeiros. Fidel Castro, como em 1975, lhe negou uma entrevista.
"Soube de coisas surreais", afirma Morais, "demonstrações inacreditáveis de sobrevivência".
Um exemplo: em 93, Cuba sofreu um radical racionamento de energia. Havia um rodízio que deixava determinadas regiões sem luz durante dois terços do dia.
Estranhamente, os impulsos telefônicos aumentaram muito das 19h às 20h30. O governo resolveu investigar a causa. E notou que, no horário do congestionamento, a televisão cubana exibia a novela brasileira "Vale Tudo".
Dispostos a não perder nenhum capítulo da trama, os espectadores sem luz ligavam para amigos que moravam em áreas com energia elétrica e escutavam a novela pelo telefone.

LEIA MAIS sobre Fernando Morais à pág. 4-3

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