São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um manual de sobrevivência política

HÉLIO SCHWARTSMAN
EDITOR DE OPINIÃO

Baltasar de Gracián, padre jesuíta, talvez um dos mais importantes moralistas do século 17. São provavelmente poucos os brasileiros a conhecer sua obra, mas basta dizer que ela despertou o interesse de autores como Nietzsche e Schopenhauer, o qual chegou a traduzi-la para o alemão. O próprio La Rochefoucauld imitou várias passagens de seus textos.
Em "A Arte da Sabedoria Mundana" (texto agora lançado em português pela Editora Best Seller), definido como um livro de sabedoria, Gracián despeja ao longo de 300 pequenos aforismos e máximas conselhos sobre como se comportar em sociedade e na política.
As semelhanças entre a Espanha do século 17 e o Brasil de hoje -o grande esplendor da corte ao lado da miséria absoluta- não se limitam ao plano social ou ao problema da corrupção política. Elas ocorrem também no campo estético. Como faz notar Christopher Maurer, da Universidade Vanderbilt, introdutor da edição brasileira: "Trata-se de um dos escritores mais lacônicos do século 17, um período em que os humanistas europeus (...) se deleitavam com Sêneca e Tácito, perdendo o gosto pelo copioso Cícero". E quem duvida desse laconismo nos dias de hoje pode dirimir suas dúvidas abrindo um jornal brasileiro qualquer munido de uma régua.
Que não se iluda contudo o leitor. Laconismo não é em absoluto sinônimo de leitura fácil ou frivolidade. Sutileza, trocadilhos e deslocamentos são uma constante em Gracián. Como nota Maurer, o moralista provavelmente concordaria com seu conterrâneo barroco Luis de Góngora: "É uma questão de honra para mim fazer-me obscuro aos ignorantes, pois é isso que distingue os cultos; falar num estilo que pareça grego aos ignorantes, pois não se devem atirar pérolas preciosas aos porcos". Ainda que de maneira mais cínica, esse espírito gongórico continua vivo até hoje. Em relação aos editoriais, o saudoso e sempre claro Cláudio Abramo costumava afirmar: "Ah! De vez em quando põe uma palavra difícil aí que todo mundo vai achar que a gente sabe do que está falando".
Uma última palavra sobre Gracián antes de partir para uma pequena amostra de sua obra. Embora nenhum de seus escritos tenha sido considerado herético -aliás Deus aparece em raríssimas passagens-, o fato de jamais ter pedido a permissão de seus superiores para publicar seus textos levou-o a perder sua cátedra e a ser proibido de mandar imprimir novos livros. Nascido em 1601, morreu em 1658.
E já que muitas cidades brasileiras vivem ainda um clima eleitoral e muito se fala em soteropolitanas reformas constitucionais, um primeiro e útil conselho: "Aquilo que muito se exalta raramente corresponde a expectativa. Nunca o verdadeiro pode alcançar o imaginado" (o fura-fila ou a tão sonhada reestruturação tributária quando bastaria cobrar de quem sonega, para ficar em dois exemplos), "porque fingir perfeições é fácil, difícil é consegui-las" (aforismo 19).
Para a equipe ministerial de FHC, Gracián também traz um bom conselho: "Cercar-se de auxiliares competentes. Os poderosos se dão bem quando cercados de valentes de notável compreensão, capazes de livrá-los das enrascadas em que foram colocados pela própria ignorância..." Não se pode negar que Sérgio Motta seja valente, mas quanto à segunda parte da proposição... (15).
Ou ainda: "O valor de um ministro nunca depreciou a grandeza de seu patrão. Ao contrário, todo crédito pelo sucesso recai sobre a figura principal, assim como crítica no caso do fracasso. Os superiores é que ganham a fama. Nunca se diz 'ele tinha bons ou maus ministros', 'mas ele era um bom, ou mau, artífice'. Portanto, escolha com cuidado, examine os seus ministros. A eles você está confiando sua fama imortal" (62). A máxima, ao mesmo tempo adverte FHC e explica o sucesso de Itamar Franco.
Pode-se dizer que Gracián, embora seja um entusiasta da prudência, não era exatamente um tucano: "O engano é comum, portanto previna-se. Mas esconda sua cautela dos outros, para que não percam a confiança" (45). Aqui, muro e cautela tornam-se sinônimos.
Como que profético, o autor previu a relação do Executivo com a bancada fisiológica: "Até as lebres puxam as barbas de um leão morto. Não se brinca com a coragem. Se ceder uma vez, acabará cedendo de novo e sempre. Será preciso vencer a mesma dificuldade mais tarde (...)" (52).
Mas uma lição FHC parece ter aprendido ao aliar-se a ACM: "O sábio considera os inimigos mais úteis do que o tolo considera os amigos. Sabe a malevolência aplainar montanhas de dificuldades, que o privilégio não se atreveu a enfrentar. Muitos devem sua grandeza aos inimigos" (84). "Vanitas vanitatis". Outro bom conselho ao vaidoso presidente: "Quanto melhor você é em algo, mais deve ocultar seus esforços, de modo que a perfeição pareça ocorrer naturalmente. (...) O homem prudente não deve nunca reconhecer seus próprios méritos (...) Duas vezes superior é quem tem todas as qualidades, mas nenhuma em sua própria opinião" (123).
Para a equipe econômica, vaidosa dica: "Entrar concedendo e sair vencendo (...). Nunca trate questões de forma confusa, em especial as arriscadas. Cuidado com aqueles cuja primeira palavra costuma ser não. O melhor é disfarçar a intenção, de modo que eles não percebam a dificuldade de dizer sim (...)" (144).
Ainda para Serjão, algumas palavras de ouro: "Falar com prudência. Sempre há tempo para proferir uma palavra, mas nunca para retirá-la. Fale como se redigisse seu testamento: quanto menos palavras, menos ações judiciais (ou catástrofes políticas, no nosso caso)" (160).
Em algumas manobras (principalmente cambiais e de arbitragem), a emenda sai pior que o soneto: "Não transformar uma tolice em duas. É frequente cometermos quatro para corrigir uma. (...) É sempre mau apoiar a causa errada (...). A imperfeição taxa, mas pagamos ainda mais caro se a defendemos e aumentamos (...)" (214).
Como se vê, Gracián tem muitas respostas e muitos conselhos para uma série de dúvidas bastante atuais; só não responde por que a Best Seller decidiu traduzir uma obra escrita numa língua tão próxima do português, o espanhol, tomando por base o "original" inglês.

Texto Anterior: As sinuosidades da língua
Próximo Texto: SZYMBORSKA; HISTÓRIA; CHANDLER; PERFIS; REVISTA 1; REVISTA 2; JULIEN GREEN; CONCURSO; ANTROPOLOGIA; LANÇAMENTO 1; LANÇAMENTO 2; MAIS VENDIDOS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.