São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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Os surdos também ouvem

GILBERTO DIMENSTEIN

Os americanos criaram publicação destinada a um exótico leitor: ex-surdos.
Intitulada "Contact" ("Contato"), a publicação é editada pelo cientista Larry Orloff, que, desde a infância, começou a perder a audição. Um dos textos é um relato emocionado do próprio Orloff, ao descrever o que sentiu ao captar, embora precariamente, sons esquecidos: grilos, pássaros e o sino da igreja.
Ele e seus leitores são uma categoria especial. Neurocirurgiões implantaram em seus ouvidos uma minúscula fileira de sensores (eletrodos), compensando a ausência de pêlos no sistema auditivo que transformam ondas sonoras em impulsos elétricos.
Embora sem devolver a audição normal, essa experiência é apontada como um dos raríssimos sucessos dos implantes de instrumentos nos cérebros, dando ao ser humano um toque de robô, no estilo homem biônico -e ajudam a estimular uma nova mitologia, reveladora dos sonhos e fantasias deste fim de século.
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É uma delícia ler sobre os novos mitos porque mesclam a realidade com filme de ficção científica. A diferença é que, por mais malucos que pareçam, cutucam nossas convicções. Ao invés de atores, sempre existe um cientista de carne, osso e diploma na parede disposto a dar asas à dúvida com palavras que temos dificuldade de entender.
Por isso, muita gente nos EUA presta atenção, inclusive jornalistas especializados, quando se especula sobre os poderes de implantes cerebrais de microprocessadores, a mente dos computadores, onde se processam as operações.
Se uma dessas especulações virasse realidade, abalaria os cursos de línguas. Um microprocessador daria ao cérebro a capacidade instantânea de compreender qualquer língua estrangeira.
Para entender: seria algo que parecido aos dicionários instalados em qualquer computador de botequim, capazes de traduzir palavras estrangeiras.
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Dona da maior circulação do mundo, a revista "Time" mostrou na semana passada como viraram tênues os limites entre a ciência e a ficção. Na sua reportagem de capa, intitulada "Jovem para Sempre", eles não descartam nas entrelinhas nem sequer a chance de que, um dia, talvez, quem sabe, se descubra não a cura das doenças -mas a cura da morte.
Menos sutilmente, estimula a esperança de que, talvez, quem sabe, imagine só, o ser humano chegaria aos 300 anos.
A revista ancora o sonho em moscas e minhocas que, tratadas em laboratórios, passaram a viver várias vezes mais. A suspeita é de que, em algum lugar, seria possível desmontar um relógio que determina o aparecimento de rugas, seios caídos, pernas flácidas, queda de cabelo.
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Ao tentar separar fantasias e bom senso, a reportagem estabelece como realista que, a partir das descobertas médicas nas próximas três décadas, a expectativa de vida suba para 120 anos. Seria a continuação do impacto provocado pelo inglês Alexander Fleming, que descobriu o primeiro antibiótico.
Traduzindo: as crianças de hoje se lembrariam de seus pais -ou seja, nós- como pessoas que morreram jovens porque não completaram 80 anos. Assim como achamos que nossos tataravós morriam cedo porque não completaram 50 anos de idade.
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Os novos mitos nutridos pela tecnologia reforçam o absurdo brasileiro. Dezenas de milhares de crianças que não completam parcos 12 meses de vida morrem anualmente porque simplesmente não têm comida ou bebem água contaminada.
Mais um sinal de barbárie: o assassinato é, hoje, a principal causa de morte dos jovens.
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Por falar em assassinato, passei por uma interessante experiência em Salvador. Debati num seminário direitos humanos com os comandantes das polícias militares brasileiras.
Vim preparado para dissertar sobre o óbvio: o país está povoado por policiais, muitas vezes com apoio ou até estímulo de seus superiores, que usam arbitrariamente o poder. Merecem, portanto, apanhar como apanham dos jornalistas. A idéia foi contar o que se passa em Nova York, onde o crime com respeito aos direitos individuais -também veio um dos comandantes da polícia de Nova York.
Vim também preparado para a reação óbvia: um diálogo de surdos. Aguardava comentários irados de prepotentes que se sentem ofendidos e não gostam de jornalista que aponta o dedo e acham que direitos humanos são frescura de intelectual.
O que vi não foi, porém, o óbvio: claro que não deixaram de criticar a imprensa. Mas não mostraram urticária ao debater sobre direitos humanos e, mais do que isso, fizeram um mea-culpa.
Nem de longe estou satisfeito com os níveis de brutalidade policial. Mas sou forçado a reconhecer que existem avanços.
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PS - Testemunhei em Salvador uma ótima experiência. O Unicef, Anistia Internacional e Projeto Axé estão dando cursos de direitos humanos para policiais militares baianos. Todos são unânimes em afirmar que ainda existem abusos contra crianças, mas reconhecem que os policiais reciclados mudaram de mentalidade e passaram a agir com respeito.
Como se vê, a educação é o melhor remédio contra surdez.

Fax (001-212) 873-1045
E-mail gdimen@aol.com

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