São Paulo, quarta-feira, 27 de novembro de 1996
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Truffaut vivia entre realidade e ficção

BETINA BERNARDES
DE PARIS

Um homem contraditório, com alma do século 19, que vivia na penumbra entre a realidade e a ficção. Assim o cineasta François Truffaut é descrito pelo historiador e crítico da "Cahiers du Cinéma" Antoine de Baecque e pelo diretor de redação da revista, Serge Toubiana, na biografia lançada pela editora Gallimard na França.
Os dois leram durante três anos as incontáveis cartas que Truffaut escrevia a amigos, reviram seus filmes e fizeram 60 entrevistas.
O resultado são as 650 páginas do livro, que traz algumas revelações sobre a vida do mais celebrado diretor de cinema francês.
Truffaut nasceu de forma clandestina. Sua mãe, Janine, solteira, não queria que a sociedade tomasse conhecimento do filho. Após o parto, François foi encaminhado a uma instituição, onde ficou até os 3 anos de idade, quando sua avó o levou para casa.
Janine casou então com Rolland Truffaut, que reconheceu François e lhe deu seu nome.
Já adolescente, François é novamente internado, desta vez por ter se endividado e roubado para formar um cineclube.
Outra revelação: a amizade entre Truffaut e Genet. Em 51, aos 19 anos, o cineasta conheceu Genet, enquanto servia o Exército. Truffaut julgava ter encontrado sua alma gêmea: Genet também era filho de pai desconhecido.
Genet, Bazin, Hitchcock e Renoir são os amigos mais velhos que substituem a figura do pai biológico, cujo nome descobriu ao contratar detetives. Truffaut jamais falou com o homem apontado como seu pai. Olhou seu rosto ao cruzá-lo na rua, mas terminou a noite vendo Chaplin.
Truffaut morreu em 84, aos 52 anos, vítima de um tumor no cérebro. Leia trechos da entrevista de Toubiana, também autor de um filme sobre Truffaut, "Portraits Volés" (Retratos Roubados), à Folha.
*
Folha - Durante as pesquisas para o livro o senhor achou alguma coisa que o surpreendeu, que não esperava de Truffaut?
Toubiana - Há aspectos de sua personalidade muito contraditórios. Ao mesmo tempo que era muito fiel à amizade, podia ser extremamente injusto. Ele podia se aborrecer com alguma coisa dita por um amigo ou amiga e, quando isso acontecia, era cruel e severo.
Folha - Por que ele não era um homem de sua época, não participava de movimentos?
Toubiana - Toda a alma de Truffaut só pode se explicar porque ele era um deslocado. Um homem velho. Godard é um homem e um artista do século 20, Truffaut é do século 19, vem de leituras de Balzac, Dickens, Proust.
Folha - Mas, ao mesmo tempo, ele era muito pragmático.
Toubiana - Godard disse uma frase célebre, "Truffaut é um poeta de manhã e um homem de negócios à tarde". Truffaut compreendeu rápido que era um cineasta francês e havia um mundo inteiro a conquistar. E ele conseguiu. Era gentil e atencioso com jornalistas, era uma estratégia incrível.
Folha - Como era sua relação com as mulheres?
Toubiana - Truffaut amava em todos os níveis que se pode amar uma mulher. No seu escritório, só tinha assistentes mulheres. Na montagem de um filme, ele estava ao lado de uma mulher. Ele dizia que, à noite, não suportava a companhia de um homem. "É mais fácil ter relações com atrizes porque a gente não sai do filme, estamos ainda no cinema", ele diz em uma carta. É muito menos sórdido do que se diz frequentemente, que ele amou Jacqueline Bisset, Moreau, Deneuve, Adjani, Ardant. Ele amou todas as atrizes.
Folha - Por que ele nunca falou com o homem que achava que era seu pai biológico?
Toubiana - Truffaut não amava psicodrama. Ele descobriu a identidade desse homem em 68, quando tinha 36 anos. Ele não queria falar com o pai para não fazer sofrer Rolland Truffaut e, sobretudo, para não ocupar sua cabeça com uma realidade muito violenta. É um roteiro que lhe agrada, a idéia de ver o pai, de fazer a investigação. Ele ama ficar nessa penumbra entre a realidade e a ficção.

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