São Paulo, sábado, 30 de novembro de 1996
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Cegueira branca já faz 1 bilhão de vítimas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

O mundo só tem, neste fim de milênio, umas poucas pessoas que mantêm a calma, a tranquilidade. Mas essas pessoas, indiferentes, ou talvez devêssemos dizer privilegiadas, não devem fazer pouco da maioria, isto é, dos "milenaristas", assim chamados porque diante do milênio vibram de esperança, ou, hoje em dia e cada vez mais, de terror.
A Organização Internacional do Trabalho, por exemplo, a sólida e respeitável OIT, acaba de entrar no rol dos milenaristas, dos mortos de susto. Há 1 bilhão de desempregados, isto é, de miseráveis no mundo, que tem cerca de 6 bilhões de pessoas. É o que anuncia a OIT aos povos.
Como podemos ter chegado a tal calamidade? Os fanáticos do controle de natalidade darão de ombros. A humanidade é estúpida, dirão, permitindo que os povos atrasados não façam outra coisa a não ser transar e portanto produzir filhos.
E nos esmagam com estatísticas, cuidadosamente recuperadas em investigações históricas. Ao tempo do primeiro Natal, isto é, quando nasceu Jesus, a população mundial era de apenas cerca de 250 milhões de pessoas.
Quando me disseram isso pela primeira vez, ouvi, do fundo dos tempos, o riso debochado do rei Herodes:
"Vocês estão vendo? Se tivessem adotado meu plano anticoncepcional de extermínio de recém-nascidos pobres, não teríamos chegado jamais a esse despautério de 1 bilhão de vagabundos no planeta."
Obra milenarista importante é o romance "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago, publicado pela Companhia das Letras. Não será o melhor livro de Saramago porque lhe falta, no detalhe, mais informação sobre um governo que transforma um hospício de alienados num atroz instituto de cegos.
Apesar de se tratar de uma cegueira diferente, que tudo indica ser contagiosa, fica difícil aceitar tanta indiferença e tanta crueldade homicida desnecessárias. Na pior das hipóteses o caso despertaria a curiosidade senão da OIT ao menos da Organização Mundial de Saúde. Tal como aparece no livro o hospício fica, por assim dizer, simbólico demais.
Nada disso impede que "Ensaio sobre a Cegueira" seja um belo romance e que suas primeiras páginas nos sirvam um Saramago da melhor safra. O homem são que, ao volante do seu carro, de repente não enxerga mais os sinais do trânsito, não vê mais os outros carros, perde a visão do mundo que se transforma de repente num muro branco, leitoso -é a encarnação de um pesadelo que parece nosso, que angustia quase que fisicamente o leitor.
Por mais que tentássemos, com um apagador, tirar do quadro negro do livro tudo que foi depois escrito, veríamos que o giz branco das primeira páginas não se apaga nunca.
A cegueira é branca, leitosa, nos diz Saramago. E o livro conserva essa qualidade, de leite. Saramago é um milenarista nato. "Ensaio sobre a Cegueira" é da mesma estirpe das obras do absurdo, como "A Peste", de Camus, de 1947, e "O Rinoceronte", de Ionesco, de 1959. São livros que esmiúçam momentos em que a angústia humana cresce tanto que começa a pegar, a se transmitir, como um vírus.
Não há divã em que caiba tanta gente ao mesmo tempo. O mal ganha a cidade inteira, seja ela a Oran, de Camus, a Paris de Ionesco ou Lisboa. No caso de "Ensaio sobre a Cegueira", o livro reflete não o que possa haver de escuro no terror do homem diante daquilo que lhe escapa, que não entende. O terror é branco, como o terror de um recém-nascido quando perde de vista o seio materno.
Eu estava ainda às voltas com o livro de Saramago quando a OIT divulgou, dias atrás, a notícia do bilhão de desempregados, e palavra que vi essa inacreditável horda diante de um seio enorme e de 1 bilhão de tetas de vacas leiteiras.
A culpa de tais imagens que me ocorreram, de berçário e manjedoura, deve ser atribuída a Saramago. Quando esteve no Brasil em janeiro deste ano, para aqui receber o Prêmio Camões, ele concedeu várias entrevistas à imprensa e conversou longamente com o pessoal do caderno "Mais!" da Folha. Pois em mais de uma ocasião, conduzido talvez pela leitosa cegueira do seu "Ensaio", Saramago foi ter ao leite propriamente dito, leite de vaca, alimento nosso, companheiro do pão nosso de cada dia.
Saramago é homem direito, quer dizer, homem de esquerda. Falou diretamente sobre política, dizendo:
"Temos em Portugal um governo socialista e agora temos um presidente socialista. Está muito bem, mas estaria muito melhor se, a partir disso, tivéssemos socialismo. (Risos) Em toda a Europa, há partidos socialistas no poder que não têm nada a ver com o socialismo."
Pouco depois, na sua longa entrevista, Saramago encontrou os meios de voltar ao seu tema do "Ensaio sobre a Cegueira", o tema do absurdo, do homem que se revolta de repente e que é tratado como se fosse portador de um mal contagioso.
Como lhe perguntassem como via a integração de Portugal na União Européia, Saramago respondeu:
"Os subsídios da UE contribuíram para melhorar certas estruturas (...), mas a agricultura em Portugal está de rastros, reduzida a quase nada. A Europa não precisa daquilo que lá se cultiva. Vou dar um exemplo que não é de Portugal, é da Espanha. À Espanha foi ordenado matar 400 mil vacas leiteiras, porque a Europa produz demasiado leite."
E Saramago concluiu: "Só num mundo que justifica o 'Ensaio sobre a Cegueira' isso faz sentido: com milhões de pessoas a morrer de fome, a Europa dá-se ao luxo de matar 400 mil vacas".
Relembro essa entrevista de José Saramago, relembro a leitosa cegueira de seus heróis, penso na sede de leite que deve ressecar a garganta do bilhão de desempregados contados pela OIT e das crianças que têm em casa.

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