São Paulo, domingo, 1 de dezembro de 1996
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Os limites da manipulação

VOLNEI GARRAFA; GIOVANNI BERLINGUER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A questão da "manipulação da vida" pode ser contemplada a partir de variados ângulos: biotecnológico, político, econômico, social, jurídico, moral... Em respeito à liberdade (individual e coletiva) conquistada pela humanidade, a pluralidade constatada neste final do século 20 requer que o estudo bioético do assunto contemple -na medida do possível e de forma multidisciplinar- todas essas possibilidades.
Nessa linha de idéias, e em respeito à própria visão abrangente que a bioética propõe, os problemas inerentes aos "limites da manipulação da vida humana" não se atêm exclusivamente às fronteiras do desenvolvimento biotecnocientífico mas, também, à análise das situações cotidianas. Ou seja, de "... uma ética que se ocupe daquilo que acontece à maioria das pessoas todos os dias; e que não deveria acontecer" (1).
Com relação à vida futura do planeta, não deverão ser regras rígidas que estabelecerão até onde o ser humano poderá ou deverá chegar. É necessário que se passe a discutir princípios mais amplos que, sem serem quantitativos ou limítrofes na sua essência, possam proporcionar contribuições conceituais e também práticas no que diz respeito ao equilíbrio e bem-estar futuro da espécie.
Morte ou vida
Diversos setores da sociedade, principalmente aqueles religiosos e mais dogmáticos, têm traçado uma visão perturbadora, pessimista e apocalíptica da relação entre a ciência e a vida humana neste final de século. Um dos documentos mais respeitáveis surgidos nos últimos anos e que contempla a discussão bioética -a encíclica Evangelium Vitae, do papa João Paulo 2º- desenvolve essa linha de pensamento (2).
A relação de temas abordados pela encíclica papal abrange tudo aquilo que se opõe de forma direta à vida, como a fome e doenças endêmicas, guerras, homicídios, genocídios, aborto, eutanásia; tudo aquilo que viole a integridade da pessoa, como as mutilações e torturas; tudo aquilo que ofenda à dignidade humana, como as condições subumanas de vida, prisões arbitrárias, escravidão, deportação, prostituição, tráfico de mulheres e menores, condições indignas de trabalho. A partir dessa realidade incontestável, o papa chega a definir o século 20 como uma época de ataques maciços contra a vida, como o reino do culto à morte. A veracidade desses fatos, no entanto, é maculada pela unilateralidade do julgamento sobre o presente e pela escuridão apontada para o futuro.
A insistência nos aspectos negativos da realidade obstaculiza uma visão mais precisa e articulada deste século. Sem cair na posição oposta, deve-se reconhecer que o século 20, apesar das guerras e crimes e de estar se encaminhando para seu final em clima de incerteza, foi também o século da vida.
Este foi o século no qual foi aprofundado o conhecimento científico sobre a própria vida, o que, sem dúvida, melhorou a qualidade da maioria da espécie humana. Foi o século no qual, pela primeira vez na história, a duração média da vida aproximou-se aos anos indicados como destino "normal" da nossa espécie; no qual a saúde dos trabalhadores foi defendida e sua dignidade reconhecida em muitos países; onde vimos emergir os direitos vitais, jurídicos e culturais das mulheres, que nos séculos anteriores foram sempre desprezados; em que existiu uma substancial valorização do corpo; onde as ciências biológicas chegaram a descobertas fantásticas, beneficiando indivíduos e populações.
O desafio de hoje, portanto, é construir o processo de inclusão de todas as pessoas e povos como beneficiários deste progresso.
Ética e liberdade da ciência
O exercício do autocontrole no campo técnico-científico foi assim observado por Napoleoni: "Até hoje, não há dúvidas de que toda vez que se quis estabelecer um condicionamento não técnico sobre a técnica, a operação fracassou. Toda vez que se disse, 'aqui existe uma falha da moralidade; reconstituamos pois a moralidade, certos valores morais e também políticos, de modo a proporcionar fins diferentes daqueles que a técnica possui por si mesma' -toda vez que se tentou essa operação ela se revelou patética" (3).
A força da ciência e da técnica está em apresentar-se como uma lógica utópica de liberação, que pode prometer para o futuro inclusive a imortalidade. Tudo isso deveria, pois, desaconselhar as tentativas de impor uma ética autoritária, alheia ao progresso técnico-científico. Deveria, além disso, induzir-nos a evitar formulações de regras jurídicas estabelecidas sobre proibições.
É necessário que entre os sujeitos ético-jurídicos não seja desprezada a contribuição daqueles que vivem a dinâmica própria da ciência e da técnica, sem chegar todavia a delegar somente a estes decisões que dizem respeito a todos.
Jonas (4) falou com propriedade sobre a impotência da ética e da filosofia contemporâneas frente ao homem tecnológico, que possui tantos poderes não só para desorganizar -como também para mudar radicalmente- os fundamentos da vida, de criar e destruir a si mesmo.
Ao mesmo tempo que gera novos seres humanos por meio do domínio de complexas técnicas de fecundação assistida, agride diariamente o meio ambiente do qual depende a manutenção futura da própria espécie: o surgimento da Aids e a destruição da camada de ozônio, assim como diversos tipos de câncer ou a silicose (que continua absurdamente atingindo os trabalhadores brasileiros), são "invenções" desse mesmo homem tecnológico, que oscila suas ações entre a criação de novos benefícios extraordinários e a insólita destruição de si mesmo.
Nesse sentido, é necessário que ocorram mudanças nos antigos paradigmas técnico-científicos, o que não significa obrigatoriamente a dissolução dos valores existentes, mas sua transformação: deve-se avançar de uma ciência eticamente livre para outra eticamente responsável; de uma tecnocracia que domine o homem para uma tecnologia a serviço da humanidade do próprio homem; de uma democracia jurídico-formal a uma democracia real, que concilie liberdade e justiça (5). Trata-se, portanto, de estimular o desenvolvimento da ciência dentro das suas fronteiras humanas e, ao mesmo tempo, de desestimulá-la quando passa a avançar na direção de limites desumanos.
Tolerância
Com relação às ciências biomédicas, as reflexões morais emanadas de diferentes setores da sociedade mostram hoje duas tendências antagônicas.
Nesse quadro complexo, a bioética pode vir a ser usada por alguns como instrumento para afirmar doutrinas anticientíficas. Por outros pode ser considerada como um obstáculo impertinente ao trabalho dos cientistas e ao desenvolvimento bioindustrial; ou ainda, como um instrumento para negar o valor da ciência (ou como validação de posições pré ou anticientíficas) ou então para justificá-la a qualquer custo.
Orientar-se entre essas duas teses opostas não é tarefa fácil. A novidade e a complexidade são características inerentes à maioria dos temas bioéticos atuais, dos transplantes às pesquisas com seres humanos e animais, do Projeto Genoma à reprodução assistida. Sobre muitos desses problemas ainda não foram formuladas regulamentações que, em outros campos e em épocas passadas, conduziram a comportamentos mais ou menos homogêneos e se constituíram no fundamento de leis cujo objetivo, mais do que evitar ou punir qualquer conduta censurável, era o de manter um certo equilíbrio na sociedade.
Nos dias atuais, o desenvolvimento da ciência está sujeito a choques com diversas doutrinas e crenças existentes, ao mesmo tempo em que as opiniões pessoais também oscilam entre sentimentos e orientações diversas. Por outro lado, linhas de pesquisa se alargarão no futuro, alcançando resultados ainda imprevisíveis, enquanto diversos conhecimentos já adquiridos estão hoje somente no início de sua aplicação prática.
Se por um lado são inúmeros os caminhos a serem escolhidos para que a Terra se transforme num verdadeiro inferno, são também infinitas as possibilidades de utilização positiva das descobertas científicas. O embate entre valores e interesses sobre cada uma das opções é um dado real, inextinguível e construtivo sob muitos aspectos. A adoção de normas e comportamentos moralmente aceitáveis e praticamente úteis requer, pelas razões já expostas, tanto o confronto quanto a convergência das várias tendências e exigências.
Enfim, toda essa desorganização de idéias e práticas compromete diretamente a própria espécie humana, que se tornou interdependente em relação aos fatos, ainda que por sorte se mantenha diversificada em termos de história, leis e cultura. A relação entre interdependência, diversidade e liberdade poderá tornar-se um fator positivo somente se, no caso das escolhas práticas e nas orientações bioéticas, forem reforçadas as tendências ao pluralismo e à tolerância.
A intolerância e a unilateralidade, porém, são fenômenos frequentes tanto nos comportamentos cotidianos quanto nas atitudes em relação aos problemas de limites que surgiram mais recentemente e que crescem todos os dias. Quanto aos comportamentos, pode-se citar, por exemplo, o ressurgimento do racismo na Europa e em outras partes do mundo.
Para as atitudes com relação aos "problemas de limites" ou "de fronteiras", pode-se recordar os assassinatos de médicos norte-americanos que praticavam o aborto de acordo com as leis do seu país, em nome da "defesa da vida". A tolerância deve ser total, se entendida como respeito às opiniões alheias, mas o mesmo não pode se afirmar dos atos que muitas vezes as acompanham.
O desenvolvimento da ciência pode percorrer caminhos diversos, utilizar diferentes métodos. O conhecimento é por si só um valor, mas a decisão sobre quais conhecimentos a sociedade ou o cientista devem concentrar seus esforços implica a consideração de outros valores. Da mesma forma não se pode deixar de considerar o papel do cientista ou da atividade que ele exerce. Sua responsabilidade ética deve ser avaliada não só pelo exercício das suas pesquisas em si, mas pelas consequências sociais decorrentes das mesmas. Enquanto a ciência, não sendo ideológica por sua estrutura, pode estar à serviço ou dos fins mais nobres ou dos mais prejudiciais para o gênero humano, o cientista não pode permanecer indiferente às consequências sociais do seu trabalho (6). Se a ciência como tal não pode ser ética ou moralmente qualificada, pode sê-la, no entanto, o uso que dela se faça, os interesses a que serve e as consequências sociais da sua aplicação.
Ainda no que diz respeito à tolerância, Warnock destacou o princípio segundo o qual a única razão válida para não se tolerar um comportamento é que este cause danos a outras pessoas, além de quem o adota (7). O exemplo ao que ela se refere é a legislação sobre embriões, que foi discutida na Inglaterra durante anos.
Com relação ao aborto, é oportuno recordar que existe uma diferença entre sua legalidade e moralidade. Sobre a legalidade, vários países o reconheceram, objetivando evitar que ele permanecesse como um fenômeno clandestino, por isso mesmo agravado e impossível de prevenir. Quanto à moralidade, ele é, de qualquer modo, um ato interruptivo de um processo vital, ao qual setores da sociedade atribuem significado negativo. De qualquer forma, questões complexas como o aborto não encontram respostas satisfatórias unicamente no âmbito do pluralismo e da tolerância, devendo ser integradas a outros conceitos, como o de responsabilidade e de justiça.
Um perigo que sempre ronda os meios científicos diz respeito à possibilidade de surgirem propostas de proibições generalizadas com relação às pesquisas e práticas biomédicas que possam vir a ter seus reais objetivos distorcidos. Nesse sentido, é indispensável que as regras e as leis que dispõem sobre o desenvolvimento científico e tecnológico sejam cuidadosamente elaboradas. Segundo Lecaldano (8), existe "um núcleo de questões que precisa ser reconduzido dentro de regras de caráter moral, e não sancionado juridicamente"; e um outro, "no qual estas questões devam ser mais rigidamente sancionadas e, portanto, codificadas". O primeiro aspecto se refere ao pluralismo, à tolerância e à solidariedade, prevalecendo a idéia de legitimidade. O segundo diz mais respeito à responsabilidade e à justiça, onde prevalece a idéia de legalidade.

NOTAS
1.Berlinguer, G., "Questões de Vida: Ética, Ciência, Saúde". São Paulo, APCE/Hucitec/Cebes, 1993, p. 19-37.
2.João Paulo II, "Evangelium Vitae. Lettera Enciclica sul Valore e l'Inviolabilità della Vita Umana". Bolonha, Edizione Dehoniane, 1995.
3.Napoleoni, C., "Cercate Ancora. Lettera sulla Laicità e Ultimi Scritti". Roma, Editori Riuniti, 1988, pp. 48-49.
4.Jonas, H., "Il Principio Responsabilità. Un'Etica per la Civiltà Tecnologica". Turim, Einaudi, 1980.
5.Küng, H., "Progetto per un'Etica Mondiale". Milão, Rizzoli, 1991, pp. 37-38.
6.Sanchez Vazquez, A., "Ética". Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1985 (8ª ed.), pp. 86-89.
7.Warnock, M., I Limiti della Tolleranza. In: Mendus, S. & Edwards, D., "Saggi sulla Tolleranza". Milão, Il Saggiatori/Mondadori, 1990, p. 169.
8.Lecaldano, E., "Assise Internazionale di Bioetica", Roma, 28-30 de maio de 1992; notas preparatórias ao encontro, cujo conteúdo completo foi publicado por Rodota, S. (org.), "Questioni di Bioetica". Roma-Bari, Sagittari Laterza, 1993.
9.Rodota, S. Introduzione. In: "Questioni di bioetica".

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