São Paulo, domingo, 1 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um lamentável retrocesso

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Após forte e merecido impacto na estréia com os contos de "Pente de Vênus" (Sulina, 1995), a carioca Heloisa Seixas, 44, lança agora "A Porta", seu primeiro romance. Em que pesem o glamour da edição e o investimento publicitário da nova (e maior) editora (Record), este livro representa um retrocesso de qualidade literária em relação ao primeiro.
Em ambos o assunto principal é o confronto da Mulher com elementos misteriosos, com o desconhecido que desafia seus saberes e impõe esforços ou comportamentos que resgatem, de preferência do passado, soluções para um presente no mínimo desconfortável.
Nos contos de "Pente de Vênus", porém, símbolos de magia, assombrações ou fantasmas ancestrais conviviam, faziam parte mesmo de uma reflexão, impulsionavam questionamentos. Em certo sentido, os personagens tinham-nos sob controle, vamos dizer, e isso fazia do jogo entre razão e sentimento, ciência e forças ocultas, algo instigante e de soluções em aberto para o próprio leitor.
Veja agora um resumo do enredo de "A Porta": em meio a um bacanal chique, com pessoas de classe média e alta carioca, a emancipada Helena e o artista plástico Pedro se apaixonam de modo alucinante, à primeira vista. Aos poucos, estranhos fenômenos começam a acontecer para ela, que descobre ser Pedro devoto de macumba e por aí vai, com a força da paixão misturando-se à força de diversos orixás. Há mortes, desaparecimentos, tudo por conta de forças misteriosas, sobrenaturais.
Neste livro, parece que Heloisa Seixas resolveu simplesmente abandonar seus personagens ao sabor de múltiplas divindades. Apesar de endinheirados e cercados de aparelhos high tech, eles se afundam no ignorado e se revelam frágeis diante de crendices as mais primárias (macumbas, magias, espíritos, reencarnações).
Assim, passeia-se no boulevard Saint Germain, em Paris, com medo de exus e nanãs, da mesma maneira que, por exemplo, um jagunço inocente se embrenharia na caatinga temeroso de cruzar com sacis ou mulas-sem-cabeça.
O problema é que não há em "A Porta" um enfoque diferenciado para esse tipo de crendeirice, e o resultado é que, nessa entrega cega, desfaz-se a graça daquele jogo mencionado acima e que conferia originalidade temática à autora.
Em outras palavras, ao "materializar" o desconhecido em orixás, "serviços" etc, Heloisa Seixas "desmaterializa" os seus personagens e torna-os, assim, parecidos com centenas de outros que povoam as dezenas de livros com enredos semelhantes no seu tom de esoterismo, tão na moda hoje em dia.
A idéia mais interessante exposta pelo romance, à qual o leitor terá acesso, porém, com certa dificuldade, é a de que, mais do que o sexo ou o amor, o grande desafio para um homem e uma mulher é a emergência da paixão, sobre a qual nenhum controle parece possível. Vale refletir sobre ela. Mas é pouco.
A perda em relação a "Pente de Vênus" está também no estilo. Em seu romance, Heloisa Seixas faz concessões demais ao padrão best seller e atenua o rigor de composição linguística que caracteriza seus contos. Frases, metáforas ou imagens não têm a mesma intensidade do primeiro livro, no qual não se encontra, por exemplo, uma formulação meio banal meio bobinha como esta: "A qualquer momento, a crise pode voltar. (Helena) sente como se pisasse um solo desconhecido e movediço onde cada passo pode levá-la a afundar na areia do mistério".
Seria injusto com a autora dizer que "A Porta" é um livro ruim. Não é. Pelo contrário, está evidentemente acima da média do que se oferece no mercado. Mas, diante da escassez qualitativa de que se ressente a literatura de ficção no Brasil, seria também injusto fechar os olhos para a perda relativa que ele representa, ao menos em relação à expectativa gerada na estréia, um ano atrás.
Talvez assombrada (expressão cara à autora) com a boa e justa receptividade de seu primeiro livro, Heloisa Seixas tenha se colocado o dilema, na maioria dos casos artificial, entre escrever com qualidade e, em princípio, para poucos, ou escrever de modo mais padronizado para atingir, em tese, a muitos -parecendo ter optado pelo segundo caminho.
Bom para a autora? Talvez; não se descarta, afinal, que as vendas de "A Porta" sejam significativas. Reconfortante para o chamado grande público? Pode ser. Para aqueles que apreciaram seu primeiro livro como o advento de uma força literária nova e de ótima qualidade -como é o caso deste resenhista-, tal recuo, que se espera com sinceridade seja apenas tático, é, no entanto, de se lastimar.

LANÇAMENTO "A Porta" será lançado na terça-feira, a partir das 18h30, na Livraria da Vila (r. Fradique Coutinho, 915, SP, tel. 011/814-5811).

Texto Anterior: A falta que fazem os bárbaros
Próximo Texto: Editoras menos conhecidas ganham espaço
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.