São Paulo, domingo, 1 de dezembro de 1996
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Os rituais vibrantes de Francesco Clemente

VINCENT KATZ
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Francesco Clemente é um dos grandes pintores de sua época. Desde sua chegada a Nova York em 1980, tem sido o exemplo por excelência da cena artística contemporânea, aparecendo em inúmeros livros de arte, colunas sociais e revistas de moda. Foi uma das figuras de proa no boom artístico nova-iorquino dos anos 80 -o que resultou num gigantesco (e por vezes deletério) culto da personalidade.
No final dos anos 70, os artistas plásticos tornaram-se de repente mais famosos que as estrelas do rock. Ao lado de grupo seleto de amigos como Andy Warhol, Julian Schnabel e Jean-Michel Basquiat, Clemente veio a se tornar a própria definição de artista para um público sempre maior: não mais alguém que trabalha incansavelmente num estúdio solitário, e sim uma figura pública vibrante. Clemente prosperou com a vida noturna ao fazer decoração de clubes -a exemplo do fantástico afresco que fez para o notório Palladium.
Nascido em Nápoles em 1952, Clemente cresceu numa casa com pinturas quinhentistas nas paredes. Sua mãe publicou um livro com os poemas do filho de apenas 12 anos -coisa que o desagradou intensamente: "Foi embaraçoso, e foi isso o que fez de mim um pintor, porque achei que ser poeta era demasiado... revelador, e eu queria lidar com algo mais obscuro".
Muita gente acharia a obra de Clemente embaraçosamente reveladora, inflexivelmente voltada para o corpo humano, em especial o corpo do próprio artista, acompanhado de diversas formas femininas. Esses corpos são mostrados em todas as suas funções e por vezes em séries de figuras fantásticas e imaginárias. Suas pinturas exsudam uma força vital ao mesmo tempo sedutora e ameaçadora.
Crescendo nos anos 60, Clemente foi influenciado pelo movimento italiano da arte povera e pelo artista alemão Joseph Beuys, que também realizara aquarelas esplêndidas.
Clemente viajou muito em sua juventude. Estudou arquitetura em Roma, mas preferiu tornar-se artista plástico. Começou a expor em Roma em 1975; por volta de 1980, seus trabalhos já podiam ser vistos em toda a Europa e em Nova York. Clemente alcançou lugar de proeminência em especial por meio de uma série enigmática de desenhos e obras sobre papel. Começou a pintar a óleo depois de se mudar para Nova York.
Clemente é fascinado por todas as artes: ele e sua mulher, Alba, costumam organizar concertos em seu estúdio, com músicos como John Lurie e os do Kronos Quartet. Junto com Raymond Foye, é co-editor da Hanuman Books, dedicada à reedição de textos esgotados e literatura contemporânea. Também gosta de trabalhar em colaboração -já o fez com Basquiat e Warhol, além dos poetas Allen Ginsberg e Robert Creeley.
Há uma década, Clemente vem mantendo estúdios em Madras, Roma e Nova York, dividindo seu tempo entre eles, sempre acompanhado de Alba e seus quatro filhos. Foi no seu estúdio em Nova York que ele falou à Folha.
*
Folha - O sr. viveu em vários lugares, mas suas obras me parecem sempre intimistas. É como se estivesse dentro de um quarto, da cabeça ou do corpo de alguém. O que o sr. retira dos ambientes físicos ao seu redor, na Índia ou em Nova York? Como eles o afetam?
Clemente - Essa foi uma das minhas estratégias iniciais: dar o mesmo peso ao exterior e ao interior, considerar o corpo como uma linha dividindo o exterior do interior. A linha no desenho é a continuação da linha do corpo, de modo que o que está dentro flui para fora e vice-versa. Por essa via, o que está fora de você adquire um valor emocional, e o que está dentro adquire um valor objetivo. Assim como podemos estar tristes, contentes, solitários ou algo assim, também o mundo exterior tem diferentes tons emocionais. Cada país, cada cidade, cada hora do dia tem um som emotivo, uma cor emotiva distinta.
Folha - Certa vez o sr. disse que usa muito o auto-retrato porque o corpo é algo que todos conhecemos. Fiquei pensando se não se trata também de um certo ceticismo quanto ao que nós podemos conhecer.
Clemente - Bem, se o rosto é uma máscara, ou melhor, uma "persona", então o rosto deve fazê-lo pensar no que é constante em sua consciência, mas também no que não é constante. Quer dizer, o rosto faz você pensar no fato de estar a cada momento morrendo e renascendo a cada novo instante. A consciência do eu não está sempre ali, ela só existe intermitentemente. Acho que meditar sobre o próprio rosto significa meditar sobre essa contínua transição por que passamos, que não percebemos ou que não gostamos de perceber -pois ela é assustadora.
Folha - Mas por que o sr. se afastou disso em suas obras recentes? Há uma estratégia nisso ou é um processo inconsciente?
Clemente - Bem, há também o peso que você quer dar ao seu trabalho. Você não quer que seu trabalho se transforme numa grife, e assim você... se distancia dos outros. Se alguém diz: "Ah, é assim que você é", você diz: "Não, eu não sou assim", e passa a algo novo. Acho que se trata de uma reação temporária à aceitação geral.
Folha - O sr. trabalha uma série de imagens até esgotá-las e então passar a uma nova série, ou o processo é mais abstrato?
Clemente - É uma paixão pelo ritual. O ritual é uma função da vida humana. O contexto em que vivemos decidiu que não precisamos de rituais -mas nós precisamos. Tive a sorte de poder reinstaurar o ritual em minha vida. Mas um dos elementos-chave do ritual é a repetição -repetir uma ação e contemplar a mudança de sentido que a menor variação produz.
Folha - Que importância tem para o sr. a colaboração com artesãos, como no caso das xilogravuras que imprimiu por meio de um antigo processo na China?
Clemente - Na Índia também. Trabalhei em duas ocasiões com miniaturistas -e jamais compartilhei da mística da assinatura no canto do quadro. Acho que boa parte da história da pintura é uma história coletiva. Restaurar essa situação, mesmo que por um breve instante de sua vida, trabalhando com várias outras pessoas e sendo capaz de aceitar o inesperado -tudo isso é um grande aprendizado. Para então aceitar o inesperado que pode vir de você mesmo.
Folha - O sr. fez afrescos e começou a fazer muitos desenhos. Deve haver um impacto próprio de cada material. Mas isso serve de inspiração inicial para uma obra ou é apenas um corolário?
Clemente - Depende do contexto. Nas sociedades tradicionais, os pintores têm uma justificativa social e um público para suas obras. Depois da Revolução Industrial, os pintores não têm nem justificativa nem público, e por isso têm que inventar por si sós essas extensões de seu trabalho. Uma delas podem ser os materiais tradicionais, que estiveram sempre aí -e então você se sente quase como um ator atuando como pintor de afrescos, escultor em bronze ou desenhista. É uma maneira de fazer você mesmo acreditar que pode fazer o que faz.
Folha - Certa vez o sr. disse que a pintura é a última tradição oral. Existe algo de que só a cultura oral é capaz, algo que a cultura escrita ou acadêmica não consegue fazer?
Clemente - Vivemos na civilização do livro. Dar as costas para o livro é como adentrar um vazio, mergulhar no domínio do poeta, do pintor, do músico. Estava só constatando um processo efetivo: quando você se torna pintor, há sempre um outro pintor que autoriza você a fazer o que faz, e depois de realizar certas obras, também você pode autorizar outras pessoas a fazer certo tipo de coisa.
Para se tornar pintor, compositor ou poeta, não basta ir à escola. Você tem que admirar alguém, tem que se sentir atraído emocionalmente por alguém que veio antes e que faz você sentir vontade de falar com aquela pessoa. E para poder falar com ela, tem que ser como ela, e para ser como ela, tem que ver o que ela vê. Essa é uma tradição oral, onde o conhecimento não é algo objetivo ou externo a nós, mas está dentro de nós. É algo como um campo que nos envolve, que nós dois criamos. De modo que é também uma ilusão, uma mistificação. É intangível, é ridículo. É também frágil, muito frágil.
Folha - Em que sentido?
Clemente - Em todos os sentidos. Quero dizer, em comparação com o conhecimento científico, é muito frágil. É um ruído débil em comparação com o barulho que a ciência e os meios industriais de comunicação produzem. Mas o fato de ser frágil não quer dizer que não exista. Coisas frágeis existem, e são adoráveis.
Folha - Em diversas ocasiões o sr. mencionou suas afinidades com diversos artistas, e de modo tal que é difícil situá-lo em um momento específico das artes. Ingmar Bergman afirmou ser capaz de fechar os olhos e visualizar a casa de sua avó -quando então tem um estranho sentimento do tempo que se anula. O sr. às vezes sente não estar em Nova York?
Clemente - Bem, há que traçar uma linha entre o que é de primeira mão e o que é de segunda mão, não acha? O contexto em que vivemos é de proliferação do que é de segunda mão, da mediação -tudo o que chega a você vem de alguém que se interpôs.
Folha - Da mídia?
Clemente - Tudo é um meio, quero dizer, um intermediário. Ao passo que a pintura, a poesia e a música são como o sexo. Ou você mesmo faz ou não faz. A pintura é. Ela é uma expressão biológica. Ou você cria suas próprias asas ou não. De modo que minha inclinação pessoal é pelo conhecimento de primeira mão. Aprecio e sou grato a quem vem a mim com suas próprias asas, com seu próprio rabo, seus próprios chifres. Dou menos atenção aos que chegam com uma lista telefônica e um catálogo de chifres, rabos e asas -sinto pena, e não alegria.
Folha - Parece ser moda hoje em dia artistas plásticos fazerem filmes. Tem planos de rodar algum?
Clemente - O cinema é a arte do nosso tempo, porque nossa época é sentimental como o cinema é -por sentimental entendo a história da "persona", da máscara, a história do que parece permanente nas pessoas. A cruz nos ombros de cada um, o fardo que cada um carrega, como no filme de Buñuel. Eu me inclino mais por um outro tipo de sensibilidade, onde a "persona" não é tão pesada e importante. Não me sinto fascinado pela máscara ou pela identidade, pelos jogos a que várias máscaras estão presas, fadadas a se encontrarem. Não acho que se possa fazer um filme sem esse fascínio. Além disso, a fotografia e o cinema são muito próximas do culto da morte. Quer dizer, é o reino do instante, da sombra. É uma celebração da morte. Não quero celebrar a morte. Sou um inimigo da morte.
Folha - O que o sr. quer dizer com "inimigo da morte"?
Clemente - A pintura é estática. A pintura não se move, não entra no jogo. É algo que simplesmente fica parado e deixa a morte passar.

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