São Paulo, sábado, 7 de dezembro de 1996
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A mais bela rivalidade da história do futebol

MATINAS SUZUKI JR.
EDITOR-EXECUTIVO

"Realmente, é difícil que seja possível reunir em um mesmo país duas equipes tão potentes, tão técnicas, tão espetaculares e tão eficazes como o Barcelona e o Real Madrid. Ambos possuíam um grande plantel de excelentes jogadores, porém, dentro da qualidade dos conjuntos, sobressaía a de suas linhas dianteiras, tão excelentes." É plausível imaginar essas palavras em alguma borgeana enciclopédia do futuro descrevendo os dois elencos que valem, somados os 22 jogadores, US$ 300 milhões e que hoje entrarão no Santiago Bernabéu para parar a Espanha e a vida de milhões de telespectadores em mais de 40 países.
Só que essas palavras já foram escritas, em 1973, por Ramón Melcón e Miguel Vidal para a "Enciclopedia del Fútbol". E elas se referem não aos supertimes do Real Madrid e do Barcelona de agora, mas ao Real e ao Barça dos anos 50, quando a mais lendária história de rivalidade entre dois times de futebol realmente pegou fogo.
Há muito mais do que futebol nessa história de desamor, inveja, ciúme e ódio recíprocos, e, por isso mesmo, interdependentes (a rivalidade é indissociável do futebol. Quando, para muito além dos ressentimentos irracionais do torcedor, ela encontra justificativas objetivas, sai de baixo).
Na camisa "bulgrana" que Ronaldinho vestirá hoje, ou na camisa "merengue" que Roberto Carlos vestirá hoje, estará impressa, em tramas gotejadas de sangue, uma série incontável de desacordos: históricos, políticos, culturais, étnicos, linguísticos, econômicos (economia privada catalã x poder do Estado madrilenho), comportamentais e, como em nenhum outro lugar, futebolísticos.
Nas palavras do escritor catalão M. Vázques Montalbán, ele mesmo um apaixonado pelo futebol: "Madrid e Barcelona, dois imaginários, mais que duas abstrações, conservaram uma saníssima insana rivalidade que, finalmente, sustento, é a mais sã das rivalidades necessárias".
A união, a partir de 1479, dos chamados Reis Católicos, Fernando 2º, do reino de Aragão (que incluía a cidade dos condes, Barcelona), e Isabel 1ª, de Castela (que incluía Madrid), com a impossível comunhão de bens culturais, criou um laço que jamais foi confortável para a indomável Catalunha.
Depois, em 1714, houve a conquista de Barcelona por Felipe 5º, um Bourbon -cujos descendentes, séculos mais tarde, passariam a ser, literalmente, os mais nobres torcedores do Real Madrid.
Alias, o símbolo do rei de Espanha coroa o distintivo do Real Madrid, fundado em 1902 pelos irmãos Carlos e Juan Padrós Riubó, que, por sinal, segundo Julián García Candau, no seu "Madrid-Barça, Historia de Un Desamor", eram catalães de nascimento (essas ironias do destino são tudo na paixão pelo futebol).
A monarquia espanhola emprestou o título Real para vários times (Real Sociedad, Real Bétis, Real Oviedo etc). O Madri passou a ser Real em 1920 e tornou-se o time do coração dos Borbóns. Mais do que isto: ficou para sempre com pecha de time ligado ao poder na Espanha (até que, a partir do Pacto de Moncloa, o Barça passou a ser considerado o time do felipismo).
Quando o suíço Hans Gamper, em 1899, fundou um time de futebol na capital da Catalunha, talvez não tivesse a menor idéia de que estava criando algo que se tornaria "mes que un club". O Club de Fútbol Barcelona, ao longo de sua história, assumiu, entre outros, o papel de partido político, de força religiosa, de reduto regionalista.
Para compreender as reais, sem trocadilho, dimensões da paixão dos catalães pelo Barça, é preciso lembrar que a Catalunha é uma região política por excelência. No seu monumental livro "Barcelona", o crítico de arte australiano Robert Hughes escreve à exaustão sobre o sangue libertário, democrático e até anarquista que corria pelo sangue da população catalã -que teve um dos primeiros parlamentos da história, em 1283.
A partir da ditadura do general Primo de Rivera (1923), a língua catalã foi proibida, e o próprio time foi fechado porque os torcedores do Barcelona vaiaram o hino da Espanha, em um jogo em 1925.
O fechamento gerou a primeira grande reação de solidariedade civil em torno do Barça: o banco Jover arrecadou dinheiro para o time, e os torcedores continuaram contribuindo com suas quotas e donativos ao clube, os empregados recusaram-se a receber os salários.
Estava nascendo o maior caso de paixão de uma torcida por um time da história do futebol.
Antonio Calderón, que foi presidente da Federação da Andaluzia e gerente do Real Madrid, dizia que "os pontos de vista políticos que representam ambos clubes fazem praticamente impossível que reine a paz entre eles".
Mas a história política nem sempre é justa com o Real Madrid. Durante os anos da Guerra Civil espanhola (1936-39, por exemplo, os merengues sofreram mais do que o time dos chamados "culés".
O time de Madri praticamente paralisou suas atividades e chegou até a mudar a sua sede para Valencia, na tentativa de participar do campeonato regional da Catalunha, mas foi impedido pelos dirigentes do Barcelona, time que, naqueles anos, não só disputou vários campeonatos, como pôde até mesmo excursionar pelos EUA.
Nos anos seguintes, muitos jogadores seriam perseguidos pelo regime do generalíssimo Franco.
Apesar das históricas diferenças, até o final da Guerra Civil a rivalidade entre os dois principais times espanhóis, no terreno futebolístico, estava apenas engatinhando.
A primeira partida entre os então Madrid Foot Ball Club e Foot Ball Club Barcelona, realizada em 1902, em Madri, por ocasião dos festejos da coroação de Afonso 13º, terminou com a vitória dos catalães pelo placar de 3 a 1.
O Madrid ganhou as Copas (naquela época, chamadas Copas do Rei) de 1905 até 1908, 1917, depois só voltou ganhar novamente em 1934. O Barça ganhou as Copas de 1910 (divida com o Atlético de Bilbao, o rei das Copas), 1912, 13 (dividida com o Racing de Irun), 1920, 22, 25, 26 e 28.
Nesse período, até a explosão da Guerra Civil, o Barcelona foi campeão do primeiro Campeonato Espanhol (a Liga), disputado com dez times em 1929, atropelando o Real Madrid, que ficou em segundo, nas rodadas finais.
Em 32, com o famoso trio Ricardo Zamora (goleiro), Ciriaco e Quincones (defensores), o Real ganhou a sua primeira Liga, repetindo o fato no ano seguinte.
No dia 21 de junho de 1936, Real e Barça disputaram a sua primeira final de Copa da história. Os merengues ganharam por 2 a 1, e esta partida entrou para a história do futebol por dois motivos.
Primeiro, pela foto do extraordinário goleiro madrilenho Zamora desviando, em cima da linha fatal, um petardo do matador Escolá, salvando o Real do empate a poucos minutos do final do jogo.
Segundo, porque daí a 28 dias romperia a Guerra Civil que pararia o futebol espanhol por três anos.
Pelo menos dois jogadores do Real e do Barça de destaque desse período foram homenageados por escritores espanhóis.
O grande poeta Rafael Alberti escreveu a "Ode a Platko" ("Que mar teria sido capaz de não chorarte?/ Ninguém, ninguém se esquece/ não, ninguém, ninguém."), depois de ver o ex-goleiro da seleção húngara Ferenc Platko, considerado o primeiro a adotar o hábito de sair do gol, sangrar na cabeça ao defender a meta do Barcelona durante as finais da Copa do Rei de 1928.
Federico Muelas redigiu a "Ode a Jacinto Quincones" ("Centauro de finíssimo cimento; arcanjo que desceu ao prado") e José Garcia Nieto compôs a "Segunda Ode a Jacinto Quincones" ("Tu que multiplicavas tua presença/ quase desnudo arcanjo do esporte") em homenagem ao predecessor do nosso Roberto Carlos na lateral esquerda do Real (e da seleção espanhola; na Copa do Mundo de 34, na Itália, foi considerado o melhor jogador na posição).
Em Barcelona, o Real Madrid passou a ser encarado com o time oficial do regime franquista. E o Barcelona, segundo uma série de documentos que passaram a regular a vida esportiva sob a ditadura, visto com muita suspeição pelos homens fiéis ao generalíssimo.
Em 1942, o Barcelona ganhou a Copa. Em 46 e 47, ganhou o Real Madrid. Mas, na Liga, as coisas ficaram difíceis para o Real, que ficou 20 anos sem ganhar. O Barcelona foi campeão em 45, com apenas um ponto de vantagem sobre o Real, e bicampeão em 48 e 49.
Em 1943, em uma partida da Liga, em Barcelona, vencida pela equipe local por 3 a 0, o time do Real recebeu uma estrondosa "salva de vaias". O fato foi interpretado na capital espanhola como uma manifestação separatista, e o Barcelona, punido.
Ferido nos brios e distribuindo apitos para o seus torcedores infernizarem o Barça, o Real Madrid, no jogo de volta, voltou ao vestiário depois do primeiro tempo tendo enfiado oito gols no Barça. O jogo terminaria com um placar digno do Santos de Pelé: 11 a 1 para os merengues madrilenhos, um placar que até hoje enfurece qualquer "culé" ao ser mencionado.
Os catalães afirmam que os jogadores do Barcelona foram pressionados por uma autoridade policial antes do jogo. Ele teria advertido que existiam jogadores no Barça que só estavam atuando graças "à generosidade do regime que havia perdoado a sua falta de patriotismo" (os jogadores Raich, Escolá e Balmanya tinham se exilado após a vitória de Franco).
O árbitro da Cantábria, M. Rodríguez, também teria entrado no vestiário do Barça, antes do jogo, para exigir disciplina dos jogadores da equipe "azulgrana" (o lateral-direito do Barça, Benito, foi expulso de campo).
Um jornalista catalão, que esteve presente no velho estádio de Chamartín, escreveu uma crônica no jornal "La Prensa" classificando o resultado do jogo de "escândalo". O nome do jornalista: Juan Antonio Samaranch, o mesmíssimo presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), o homem que poderá decidir se a Olimpíada vai para o Rio em 2004.
A polêmica causada por esta partida levou à demissão do presidente do Real, Antonio Santos Peralba. Em seu lugar assumiu Santiago Bernabéu de Yeste, que emprestou o seu nome ao estádio onde se realizará hoje a partida entre os milionários elencos.
A partir da década de 50 esquenta de vez a rivalidade entre os dois times. O Barça abre a década com um esquadrão, liderado pelo húngaro Lazio (ou Ladislao, na Espanha) Kubala. Com a "saeta rubia", o Barça ganhou as Ligas de 1952 (92 gols), 53, 59 (o brasileiro Evaristo de Macedo foi o vice-artilheiro, com 21 gols) e 60 e foi tri nas Copas de 51, 52, 53, além de ganhar em 57 e em 59 (no final da década, contando com outro fenômeno húngaro, Sandor Kosics, conhecido como "o cabeça de ouro").
Foi por aí que o caldo entornou de vez. O argentino Alfredo di Stefano era uma lenda mundial jogando pelo time do Milionários, de Bogotá, Colômbia. Como o Barça era um voraz "foot hunter", ele já estava com um pé da chuteira na capital da Catalunha.
O Real Madrid entrou na dividida, que já era uma outra bola dividida, porque Milionários e River Plate, da Argentina, disputavam o direito de vender o passe do grande jogador argentino.
A Espanha dividiu-se. A polêmica instalou-se nas ruas, na boca dos torcedores, nas letras da imprensa. Neste momento, e enquanto Di Stéfano já fazia os seus primeiros bate-bolas nos treinamentos do Barcelona, o Comitê Diretor da Delegação Nacional de Esportes divulgou uma decisão sobre jogadores estrangeiros que foi interpretada como impeditiva da presença de Alfredo Di Stéfano no futebol Espanhol.
O Barça tentou então vendê-lo para a Juventus, de Turim. Bernabéu, do lado do Real, não desistiu da idéia de ter Di Stéfano no seu time e mandou um enviado procurar o jogador em Barcelona. E passou a pressionar o governo para aceitar o jogador na Espanha.
Uma reunião entre os presidentes dos dois times e as autoridades esportivas decidiu que Di Stéfano jogaria as temporadas de 53-54 e 56-57 pelo Real, e as temporadas de 54-55 e 57-58 pelo Barça, no caso mais surpreendente de rodízio de um jogador entre dois times rivais da história do futebol.
A pressão dos torcedores do Barcelona contra o acordo foi tão grande que o presidente Martí Carretó teve que se demitir. O time passou a ser dirigido por uma junta. Em nome desta junta, Augustí Montal Galobart, um pouco decepcionado com as atuações de Di Stéfano em jogos amistosos da equipe "azulgrana", descontente com os termos do acordo e acreditando demais no futebol de Kubala, vendeu a parte catalã do jogador argentino para o Real.
(Jamais um torcedor do Barcelona admitirá uma outra hipótese que não seja a de que o regime de Franco impediu seu time de ter a dupla do século, Kubala e Di Stéfano jogando juntos).
Sem perceber, o Barcelona acabou de ajudar o seu pior inimigo a montar um dos dois melhores times de futebol de todos os tempos, só comparável ao Santos de Pelé (Didi, insuspeito porque não se deu bem no Real de Di Stéfano, afirma no livro "Didi - O Gênio da Folha Seca", escrito por Péris Ribeiro, que o Real daqueles tempos era melhor do que o Santos -mas isto é uma outra polêmica).
O fato é que, a partir daí, com Di Stéfano e, depois, com a chegada do húngaro Puskas, a equipe da capital espanhola quebrou o tabu de 20 anos sem ganhar a Liga e passou a colecionar títulos como quem coleciona caixinha de fósforos.
Foi campeão espanhol em 1954, 55, 57, 58, 61, 62, 63, 64, 65, 67, 68 e 69. Somados aos títulos da década de 70, 80 e 90, chegou ao recorde de 26 Campeonatos Espanhóis. Também, devido aos títulos dos anos 50 e 60, tem o recorde de seis campeonatos europeus -e um campeonato mundial, o de 1960.

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