São Paulo, sexta-feira, 13 de dezembro de 1996
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O legado de um pensamento vivo

JORGE ALMEIDA

comentando certa vez o aspecto pretensioso das fileiras de "obras completas" que costumava encontrar nas estantes da maioria de seus colegas, Adorno notou que essa necessidade de completude poderia ser facilmente relacionada com um instinto de posse que, na medida em que pretende ter sempre à disposição todas as páginas publicadas por um determinado autor, acaba por negar aos textos e aos livros reunidos a individualidade que deveriam possuir para terem seu próprio destino.
Se o problema já era relevante quando da publicação dos escritos completos de Adorno, torna-se crucial em relação à nova iniciativa do Arquivo Theodor Adorno e da Editora Suhrkamp: publicar, em 30 volumes, cada parágrafo que o autor escreveu em seus mais de 40 cadernos de anotações, cada frase das inúmeras aulas, conversas e entrevistas gravadas, cada margem de livro na qual a sua pena tenha registrado uma crítica ou observação.
O impulso totalizante da empreitada, contrário ao espírito do pensamento do autor e ao destino efêmero que Adorno havia reservado para a maior parte desse material, pode talvez ser desculpado com o argumento de que nem mesmo o maior instinto de posse poderia aprisionar um pensamento que vive justamente do reconhecimento da falta de liberdade em que se encontra.
Por isso, o enorme interesse da edição dos textos póstumos, que, se não escapa ao mal-estar experimentado pelo autor em relação às "obras completas", representa pelo menos uma oportunidade para a compreensão desses momentos de resistência do espírito livre, nos quais Adorno reconhecia a própria força do pensamento filosófico.
O primeiro livro publicado, "Beethoven, Filosofia da Música" (1993) é sem dúvida um dos mais importantes de todo o conjunto. O volume reúne centenas de comentários e pequenos textos escritos por Adorno em mais de 40 anos de reflexão sobre a música do primeiro "compositor dialético". Já ao final da década de 30 Adorno pretendia publicar um estudo no qual a crítica imanente das obras possibilitasse a recuperação do conteúdo social expresso no "giro copernicano" da música de Beethoven.
Com o nazismo veio o exílio, e a filosofia da música passou a ser possível apenas como filosofia da nova música. Mas o projeto do que seria "sua maior obra" jamais foi abandonado, como demostram os cadernos repletos de idéias para futuros desenvolvimentos e análises. A morte prematura, em 1969, impediu Adorno de organizar o enorme material acumulado sobre o assunto, e o aspecto fragmentário do livro agora publicado soa como um protesto contra a impossibilidade da cadência conclusiva.
Dois outros projetos inacabados, um estudo sobre a teoria da reprodução musical e outro sobre o rádio, formam ao lado do "Beethoven" a primeira das seis seções que compõem o plano da edição dos escritos póstumos. A segunda seção tem a difícil tarefa de organizar, em cerca de cinco volumes, as centenas de "anotações filosóficas" dispersas nos cadernos, pastas e livros nos quais Adorno, com a sistematicidade de quem atacava o sistema como forma de pensamento, suspendia as idéias a serem posteriormente desenvolvidas.
Grande parte das primeiras versões e das variantes desprezadas quando da publicação de seus textos filosóficos virá a público, o que sem dúvida dará trabalho a mais de uma geração de filólogos, ávidos em se vingar de um autor que tanto criticou a ênfase filológica da filosofia universitária.
Para quem admira na prosa única de Adorno os esforços para a superação da rigidez e dos vícios que ameaçam a linguagem após a queda, a terceira seção reserva uma grata recompensa. Nela serão reunidos, sob o título prudente, mas revelador, de "Tentativas Poéticas", os vários poemas e esboços literários que a extrema autocrítica de Adorno havia condenado ao esquecimento, poemas que talvez lancem uma nova luz sobre a impossibilidade da lírica após Auschwitz.
A quarta seção é fundamental para aqueles que aprenderam a pensar com Adorno, e para aqueles que ainda não o fizeram. Reúne em 16 volumes os cursos ministrados após a guerra na Universidade de Frankfurt e os protocolos dos seminários realizados na década de 30. A constante reflexão sobre a necessidade e os problemas do ensino de filosofia encontra na postura de Adorno como professor a defesa de um pensamento que se atém ao primado do objeto, sem jamais abdicar da liberdade do sujeito. Partindo sempre da ficção (hoje talvez dispensável) de que os alunos nada sabem sobre o assunto, Adorno improvisa com coerência espantosa sobre as mais diversas faces do tema tratado, sem ceder à erudição arrogante ou a esquemas simplificadores.
Consciente como poucos do abismo que separa a linguagem oral das necessidades de construção e expressão da palavra escrita, Adorno condenou como sintoma do mundo administrado a intenção de registrar cada frase dita pelo professor. Para Adorno, a gravação de suas aulas correspondia a algo como uma "impressão digital do espírito", que ele entretanto permitiu, incentivando o enorme número de edições piratas de transcrições de suas conferências, até hoje cobiçadas pelos alunos.
A publicação, em meados da década de 70, das aulas sobre "Terminologia Filosófica" já havia chamado a atenção para a riqueza do material. Três novos cursos foram editados nos últimos anos: o de 1959, sobre a "Crítica da Razão Pura de Kant" (1995); o de 1963, sobre "Problemas da Filosofia Moral" (1996); e seu último ciclo de conferências, de 1968, o único com tema não filosófico e o único cujas fitas foram conservadas e portanto fielmente transcritas, uma polêmica e instigante "Introdução à Sociologia" (1996).
O plano geral da edição conta ainda com dois volumes de palestras avulsas sobre os mais diversos temas e três volumes com a transcrição de conversas, discussões e entrevistas que faziam parte do cotidiano da vida intelectual alemã em seu esforço de reconstrução no pós-guerra. A julgar pelos volumes já publicados, os editores não pouparão esforços no sentido de tornar o texto acessível, até mesmo com notas explicativas e índices remissivos, enfaticamente vetados pelo autor quando do planejamento da edição de seus "Escritos Reunidos".
Os próximos 20 anos assistirão ao surgimento de mais uma fileira de obras completas nas estantes, mas o esforço de esclarecimento que guia o otimismo prático pode atenuar sua culpa com a certeza de ter lançado novas garrafas ao mar.

Jorge Mattos Brito de Almeida é doutorando no departamento de filosofia da USP.

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