São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Programas policiais rivalizam com a barbárie

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No país da reeleição as estatísticas anunciam que os pobres estão comendo mais proteínas, que o real está integrando à franja do mercado de consumo hordas inteiras de deserdados, que a vida, enfim, como diz o samba de Martinho da Vila, vai melhorar.
Por um desses lances de ironia involuntária que é preciso analisar de perto, a TV tem investido pesado e de forma inédita num outro país. País atroz, que rima pouco com reeleição, estatísticas, proteínas, consumo e modernidade.
É o Brasil que aparece em três programas que têm como assunto aquilo que, nos tempos românticos do jornalismo, costumava-se chamar de crônica policial. Mas estes são tempos idos.
"Na Rota do Crime", campeão de audiência da Manchete, "Cidade Alerta", um dos líderes de audiência da Record, e "190 Urgente", a nova sensação da CNT/Gazeta, não são mais retratos românticos da velha bandidagem; esses programas são eles próprios uma grande bandidagem, rivalizam com a barbárie que põem no ar, mostrando a quem quiser que a TV hoje se "gangsteriza" junto com a miséria e a polícia.
São programas tão ferozes, tão acintosamente atrelados à versão policial das coisas, tão decididos e enfáticos na sua vontade de linchar o bandido, esfolar o delinquente, fuzilar "o elemento", que o precursor deles todos, o velho "Aqui Agora", sobretudo em sua nova versão, ancorado pelo casal mais bobo alegre do jornalismo brasileiro, vai acabar virando atração apropriada para crianças, moças virgens e senhoras de idade.
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Na condição de emissora oficial do país, a Globo não precisa nem quer descer às camadas imundas da realidade nacional que esses programas reproduzem na mesma medida em que retratam.
A Globo pode se dar ao luxo de eleger a face, por assim dizer, apresentável da miséria, aquela que já pode ser vocalizada politicamente, que se institucionaliza e ganha espaços "racionais" de discussão. É o caso dos sem-terra que, de vilões e baderneiros, se vêem transformados por uma novela em bons selvagens, pobres coitados que terão logo suas justas reivindicações atendidas pelo bom governo.
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Nada desse clima ameno, de violência esterilizada, existe nos programas das emissoras "marginais", que, assim como os personagens que põem em cena, são capazes de matar a mãe em praça pública para sobreviver à lei do mercado. Ali tudo é excrescência, aberração, anomalia, iniquidade.
Como o mais pobre é também aquele que precisa ter mais jogo de cintura para não sucumbir, a Gazeta acabou se virando. Subiu um tom na escala da barbárie.
Carlos Massa, o Ratinho do "190 Urgente", não é só mais um moralista pedindo a pena de morte dos mesmos pobres diabos que lhe garantem o emprego. Não. Ele próprio é uma imitação de delinquente, um "bandido cover" que se diverte com as próprias atrocidades enquanto empilha cadáveres virtuais na casa do espectador.
Ratinho é um clown da sua própria selvageria. Sua vociferação já não é a do revoltado, mas uma paródia de indignação, o que involuntariamente acaba pondo a nu a barbárie da concorrência.
Com esses novos programas policiais, a TV revela estar em sintonia com a desagregação nacional. Mas não mais na condição de testemunha ocular da história, como no extinto "Repórter Esso", e sim como sintoma e personagem.

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