São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1996
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Ator foi mais que clichê da Itália

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Diz a lenda que, quando Marcello Mastroianni veio ao Brasil para fazer "Gabriela", não foi por causa do papel do árabe Nacib, nem por Jorge Amado, ou pelo Brasil. E sim, exclusivamente, por Sonia Braga.
Imprima-se a lenda. Mastroianni representou, melhor do que ninguém no cinema o lado mais adorável da Itália. Foi o sedutor por excelência, o bon vivant extrovertido, visceralmente heterossexual, aquele que tenta fazer da vida um exercício de felicidade.
Tudo isso desembocaria num imenso clichê, não fosse Mastroianni. Ele poderia figurar em qualquer lista dos homens mais bonitos do planeta, em seu tempo. Sobre o francês Alain Delon teve a vantagem da simpatia. Sobre o norte-americano Marlon Brando, a aversão ao estrelismo. Sobre Paul Newman, a ausência de angústia da interpretação.
Não é de espantar que quem presenciou as filmagens de "Gabriela" visse nele a menos estelar das pessoas na equipe. Estar em um "set" de filmagem era para Mastroianni como estar numa festa. As preocupações ficavam para os outros (diretor, técnicos); a alegria de pôr o rosto na tela, para ele.
Mas, quando esse rosto aparecia, revelava-se um ator carismático como poucos. Talvez seu único rival na Itália, nesse item, tenha sido Vittorio Gassman. Mas Gassman é um ator altamente técnico. Mastroianni é puramente intuitivo.
Servidor do cinema, Mastroianni foi funcionário de uma empresa cinematográfica a partir de 1945. Acabou lançado como ator por Riccardo Freda, em "Os Miseráveis". Seguiram-se umas três dezenas de filmes, com Luigi Comencini, Mario Monicelli, Luchino Visconti, entre outros, até o encontro fundamental com Fellini em "A Doce Vida".
Já ali, a imagem do italiano padrão, que encarnou, vinha carregada de nuances: o vazio da doçura de viver já estava no ator.
Em "A Noite", de Antonioni, assumiu a gravidade necessária para representar a solidão de um casal agônico. Pouco depois, daria corpo a idéias como tristeza e desamparo, em "Dois Destinos", de Valerio Zurlini. Mas também ao anarquista cordial de "Os Companheiros", de Mario Monicelli.
O registro de Mastroianni foi, assim, muito mais amplo do que parece à primeira vista, embora ao longo dos anos 60, em particular, tenha com frequência ajudado a forjar a imagem do sedutor, fanfarrão, cabeça fresca de tantas comédias italianas. Maiores, como "Ontem, Hoje e Amanhã", de Vittorio De Sica, ou menores, como "Casanova 70", de Monicelli.
A partir dos anos 70, a maturidade acrescentaria outros atributos a sua imagem. O homossexual antifascista de "Um Dia Muito Especial", ou o alquebrado Casanova de "A Noite de Varennes", ambos de Ettore Scola, são criações exemplares, pela energia, talento e desprendimento que implicavam.
Mas talvez o grande momento de sua última fase, tenha sido ao fazer o Fred, de "Ginger e Fred", novamente com Fellini.
A esse tocante olhar sobre um mundo que se perdia -o dos anos de esplendor do cinema-, à observação do caráter transitório do humano, pela decadência física, Mastroianni agregou um toque de melancolia. Fez da fragilidade de Fred um atributo poético, como a dizer, em suma, que no fim da história o destino do homem é perder.

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