São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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Murros ganham potência fora do ringue

RICHARD FORD
ESPECIAL PARA A "THE NEW YORKER"

O escritor norte-americano Richard Ford usa sua história de vida para discutir a 'metafísica do soco na cara'

Acertei o rosto de muita gente em minha vida. Gente demais, estou certo. Onde cresci, em Mississippi e Arkansas, nos 50, estar disposto a acertar o rosto do outro significava alguma coisa. Significava que você era, bem, valente.
Significava que você era experiente, também. Também que você era impetuoso, sedutoramente impulsivo, preocupado, mas não intimidado pelas consequências, reconhecidamente, mas não tão reconhecidamente teatral, e provavelmente perigoso.
Um franco e pensado ato, bater no rosto era um movimento em direção à maioridade, um objetivo comum a todos -um passo na direção certa.
Não posso dizer acuradamente de onde veio esse impulso de bater, embora não fosse, tenho certeza, mera pressão do ambiente. Meu avô era um boxeador, e ser "rápido com os punhos" sempre foi uma boa qualidade em seu modo de ver.
Ele se referia acertar alguém como "biffing" (cf2gíria que significa golpear). "Eu o golpeei", diria, movendo a cabeça em sinal de aprovação e, algumas vezes, até rindo, o que significava que foi bom, ou, ao menos, admiravelmente pernicioso.
Uma vez, em Memphis, em 1956, em um jogo de futebol universitário no Crump Stadium, ele "golpeou" um homem bem na minha frente -um bêbado do qual se cansou por tê-lo acertado não uma, mas duas vezes no calcanhar, quando estávamos atingindo o alto de uma escadaria de concreto em direção a uma saída.
O "golpe" que ele deu naquele dia foi um "curto", um "punch" de peso pesado vindo do ombro. Tecnicamente, um gancho. Foi apenas uma bordoada, mas o outro cara, um homem com um chapéu de feltro (era outono), recebeu-o no queixo e caiu para trás, direto para baixo pelos degraus de concreto no meio de algumas outras pessoas. Ele foi "golpeado". Nós, simplesmente, continuamos andando.
Houve outras ocasiões em que meu avô fez isso também: uma delas, bem no lobby de um hotel em que se hospedou -derrubou um homem no tapete com duas bordoadas de arrebentar, que me pareceram oriundas de suas pernas. Não lembro o que o homem tinha feito.
Outra vez foi em um campo de caça. Um homem, dentro da nossa picape, de algum modo permitiu que um rifle de caça se descarregasse dentro da cabine, com a gente dentro, fazendo um buraco na porta -e um ruído muito, muito barulhento. O homem era nosso convidado e estava, naturalmente e suficientemente, bêbado.
Mas nos assustou quase até a morte, e meu avô, cuja alcunha no boxe era Kid Richard, mandou seu "golpe" contra o homem, passando sobre minha cabeça, esticando-se sobre o assento.
Eram dez horas da noite. Estávamos parados em uma plantação de soja, na esperança de avistar um veado. Nunca pensei muito nisso depois, exceto para achar que o que ele, meu avô, fez foi, indiscutivelmente, a melhor reação.
Mais tarde, quando tinha 16 anos e meu pai repentinamente morreu, meu avô me levou para a Associação Cristã de Moços -isso era em Little Rock- e lá, junto com os meninos que treinavam para o Luvas de Ouro (mais tradicional torneio amador dos EUA), ele praticou os sólidos mecanismos de bater comigo: a necessidade de manter o corpo compacto, a apropriada firmeza dos punhos, o confiante passo para trás, a focalização dos olhos, a virtude da combinação de um "punch" triplo.
E ele me ensinou como "moldar" um "punch" -mover-se rapidamente, girar os pulsos um quarto para dentro, representar no exato momento do impacto, e, na sua crença, exagerar um diferente e duro golpe dentro de um formato de detonação.
Seguindo isso, eu testei tudo o que aprendi com os garotos do Luvas de Ouro, embora com poucos efeitos positivos para mim.
Eles eram, apesar de tudo, resistentes, de olhos pequenos e bocas miseráveis, garotos do Arkansas rural, com muito mais a perder do que eu -eram mais duros do que eu. Mesmo assim, nos anos seguintes, eu tentei praticar tudo o que aprendi, sempre fazendo o corte por dentro, dando o passo para trás, sempre olhando onde eu estava batendo. Isso, considerava, eram os aspectos cruciais da ciência. Conhecimento de quem é do ramo. Uma parte do que eu fui.
Lembro, claro, da primeira vez em que fui atingido no rosto -no caso, por alguém que queria me ferir, quebrar meu maxilar ou meu nariz (o que aconteceu), arrancar meus dentes, arruinar minha visão, cortar-me, entregar-me à inconsciência: matar-me, pelo menos no sentido figurado.
Ronnie Post era o nome de meu oponente. Era 1959. Tínhamos 15 anos e havíamos discordado sobre algum trivial assunto de escola (depois parecíamos nos gostar).
Mas ele e seu amigo, um garoto de sorriso malicioso chamado Johnny Petit, me encontraram após a aula um dia e me acertaram uma chuva de bordoadas.
Outros estavam presentes, também, e distribuí socos selvagens e amadores -nada parecido com o que aprenderia mais tarde. Nenhum durou muito ou causou dano apreciável. Não houve espetáculo. Nenhum "boxeou". Mas apanhei bastante, e lembro a sensação do primeiro "punch", que eu percebi estar vindo, mas não pude evitar. A sensação foi mais como um som do que um choque -dois grandes pratos sendo tinidos atrás da minha cabeça, seguidos quase que imediatamente por um frio viajando do meu pescoço para os dedos dos meus pés.
Particularmente, não me machucou ou me nocauteou (não é tão fácil nocautear uma pessoa). E não me assustou. Eu até mesmo me gabei mais tarde. Mas quando penso nisso agora, após 37 anos, posso ouvir aquele som de pratos, sentir a cabeça leve e fria novamente, como se o ar em volta de mim ficasse rarefeito de repente.
Pelos anos, desde então, aconteceram outras ocasiões para esse tipo de cegueira, que marcaram reações às contingências do mundo -todas elas, penso agora, a serem lamentadas.
Uma vez bati no meu melhor amigo ao mesmo tempo no maxilar e entre as pernas em um jogo de futebol (americano) no qual disputávamos com camisas e a pele. Nunca mais fomos amigos depois.
Outra vez acertei um companheiro de faculdade com um golpe simples no nariz, porque ele me humilhou em público e também porque eu não gostava dele.
Em um jantar, após o funeral de um amigo (bem num funeral), dei um "punch" em um dos pranteadores, que, graças a seu jeito de lamentar, estava fazendo a vida e a tristeza pior para todos, e que estava "pedindo", ou assim entendi.
E muitos, muitos anos atrás, em uma tarde de sábado em meados de maio, em uma via pública de Jackson, Mississippi, eu dobrei e beijei outra bochecha desprotegida de menino pelo expresso propósito de evitar que ele me batesse.
(Há muito pouco para aprender de tudo isso, temo, além do que onde a glória não mora.)
Tem sido verdade que em toda a minha vida, quando me deparo com o que parecer ser absolutamente injusto, indigno, insolúvel dilema, penso em bater nele ou em seu emissário humano no rosto.
Tenho sentido isso sobre autores de injustas críticas de livros. Sobre outros escritores que considero pérfidos e merecedores de algum sofrimento. Senti isso com minha mulher algumas vezes. Uma vez arrisquei um soco despretensioso em meu próprio pai, um "punch" que não acertou, mas que me causou péssimas consequências.
Eu até senti isso do vizinho do outro lado da rua, que, no calor da argumentação sobre nada mais que um latido de cachorro, me bateu no rosto duramente, levando-me (ou assim julguei) a bater até deixá-lo estendido na calçada desamparado. Eu tinha 48 anos quando isso aconteceu -um adulto, de todos os pontos de vista.
Hoje, por promessa, não faço mais esse tipo de coisa, e rezo para que ninguém o faça comigo. Mas bater no rosto ainda é um ato cuja possibilidade eu conservo como idéia -um daqueles inexoráveis fatos pessoais que carregamos na memória profunda e que inventariamos quase todo o dia, e que representam as mais reais, menos inequívocas, realidades a que podemos reivindicar acesso.
Esses fatos são entradas em nossos âmagos, que cada um de nós está sempre compondo com uma profusão de "não estamos contentes". Estranhamente, não penso muito em bater quando assisto a uma luta de boxe atual em que um monte de pancadas acontece.
Boxe parece ser sobre muito mais do que bater -sobre não apanhar, sobre certas tentativas de graça, sobre até mesmo compaixão ou destino ou dignidade. Embora bater no rosto possa ser tudo o que o boxe representa -isso e dinheiro- e seus devotos simplesmente terem moldado suaves mecanismos de linguagem para se defender contra sua dolorosa redundância.
Isso faz entender por que A.J. Liebling (autor norte-americano) escreveu menos sobre boxe do que sobre boxeadores, e por que ele chamou-o de ciência, e não de arte: porque bater no rosto não é particularmente interessante, visto que carece até mesmo do menor grão de otimismo.
Parte da minha filosofia é que para mim mesmo sou um homem -justo, injusto, desinteressante, estúpido- que poderia estar disposto a bater no rosto. E ainda existem momentos em que isso ou aquilo -alguma animosidade, alguma afronta, uma iniquidade ou malfazejo- acabariam em socos.
Possivelmente sou doentio e violento por dentro, e o que preciso é de terapia ou começar a vida de novo em uma melhor direção.
Ou possivelmente exista só uma mesquinharia no mundo e, como Auden (Wistan Hugh Auden, poeta inglês) escreveu, "não somos nenhum de nós muito bondosos".
Mas aquele pensamento -bater-, emocionante e horroroso ao mesmo tempo, é ainda uma crua, mas importante calibragem para o que é serio para mim, e um guia, ainda que extremo, para como eu poderia confrontar o sério se preciso fosse.
Dessa forma, eu o admito como uma parte de minha dramaturgia interna, e relacionado, como os dramas pessoais e muitas perversões são, a um senso de justiça.
E no final, parece melhor e mais informativo no geral que eu saiba pelo menos esse tanto sobre mim mesmo -e aprender a ter cautela, paciência e empatia- do que absolutamente nada.

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