São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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Os dentes cerrados e os amores avessos

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO

Ela é uma cantora tardia, noturna. Na idade de ouro das cantoras, quando poucas vozes circulavam pelo éter, cada uma impunha seu timbre ao repertório, ao público, aos arranjos -qualquer leigo ainda é capaz de discernir a voz de Elis, por exemplo, num relance do dial. Agora, pelo contrário, toda voz é anulada pela proximidade estatística com a voz vizinha. Por isso, se admiramos as cantoras do passado, com mais razão deveríamos admirar as novas, as que sabem que há cantoras em excesso e nem por isso são menos cantoras.
A ambição de uma cantora sempre foi medida pela amplitude de espectro do seu repertório, só que recentemente é a canção que encarna na cantora, não mais o contrário: Cássia Eller, por exemplo, apesar do "estilo inconfundível", é o nome de seis ou sete intérpretes diferentes. Há uma força centrífuga agindo sobre o estilo de cada cantora. Acontece um milagre quando uma delas solda pedaços esquizóides, restos de fórmulas estraçalhadas, num timbre que seja reconhecido de estalo: "evidente, essa é fulana!".
Ela é, assim, uma cantora tardia. Seu público hesita sem saber para onde vai, uns gatos pingados, umas e outras, alguma prima no meio, público fanático no sectarismo da novidade. É uma cantora tão inconsagrada que ainda sofre assédio sexual em cena e responde, quando gritam algum elogio obsceno, baixando os olhos de falsa tímida: "essa foi forte". Nunca houve aparição tão furtiva quanto a dela entrando toda de preto no palco, míope sem óculos, mandíbula cerrada, a guitarra em punho.
Além de cantora, de musa de um bandinho que a venera, ela é poeta. Seu assunto é sempre uma ausência, alguma perda ou expectativa descumprida, e de fato só pode cantar quem se lamenta. Quem vive a pleno vapor, quem renasce a cada jato de acontecimentos, não precisa nem deve cantar ou escrever. A felicidade de cantar é substitutiva, fica posta no lugar de uma outra, que não houve: paciência. Daí a tímida tristeza, o luto, a compenetração. Zélia Duncan canta amores difíceis e avessos, probabilisticamente raros...
A poesia da sua figura gélida, seus versos ruins de roqueira e o jeito de ela maltratar a guitarra -isso são belezas que é inútil tentar pôr em palavras, paciência também, quem não viu que visse. Uma amiga a definiu estranhamente como uma intérprete em estado pré-menstrual. "O carteiro não veio, a estrada te sopra pro alto, você não volta nem com escolta": ela é uma cantora que lamenta o que poderia ter sido, é como a última das nossas vozes insistindo no que as outras já disseram com mais virtuosismo e menor franqueza, pois cantar é repetir.

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