São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Arte de corpo inteiro

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A primeira vez que ouvi Badi Assad tocar e cantar foi em São João da Boa Vista, sua terra natal, no interior de São Paulo. No palco estavam Sérgio e Odair Assad -que formam o melhor duo de violões do mundo-, e, ao final do concerto, os irmãos chamaram a caçula da família, Badi.
Ela entrou com seu violão pendurado no pescoço, como uma criança-prodígio disposta a "fazer arte". E assim foi: Badi executou malabarismos, tocando violão com a mão esquerda e percussão com a direita, batucou no corpo e na boca, cantou, dançou e, a seguir, os irmãos voltaram para tocar um violão "a quatro mãos" e ainda chamaram o pai, que se juntou aos filhos com seu bandolim.
Apesar do clima descontraído, saí do concerto perturbada pela "arte" de Badi, que, com aquele jeito brincalhão, me pareceu seriíssima. Arte de verdade. Lembro-me principalmente de "A Bela e a Fera", de Chico Buarque e Edu Lobo, num arranjo extraordinário, polifônico no melhor sentido de Bach, que seria a seguir incluído no primeiro CD de Badi, "Solo", lançado nos EUA. Não bastassem as difíceis dissonâncias vocais, Badi dedilhou uma melodia inteiramente diversa no violão, além de, de vez em quando, tocar chocalhos e fazer estalos percussivos com a língua e a boca.
Mas o que mais impressiona, nessa e em outras canções arranjadas por ela e por Sérgio, não é a dificuldade de se coordenar todas essas ações concomitantes, mas a naturalidade com que isso acontece. Em Badi todo difícil parece fácil. De tudo, o que permanece no ouvinte/espectador não são as proezas, mas a música. Música que emana não só da boca, mas do corpo inteiro, um corpo que não faz arte: é arte. Não conheço artista feminina tão completa no passado ou presente da música brasileira.
O talento múltiplo de Badi nos remete um pouco ao senso primordial da arte: uma necessidade vital. Em seu estilo democrático por excelência, todos os sons são possíveis e todos os sons são música. Talvez daí a diversidade de seu repertório, desde o primeiro e único disco brasileiro, "Dança dos Tons", até os dois CD's americanos, "Solo" e "Rhythms". Junto a peças conhecidas de Egberto Gismonti, Ralph Towner, Villa-Lobos e de seu irmão Sérgio, ela tem trabalhado no sentido de divulgar novos compositores brasileiros, como Ulisses Rocha, Lenine, Sheila Zagury, Chico César, Paulo Bellinati, José Miguel Wisnik.
O Brasil, no entanto, não parece disposto a aceitar a multiplicidade sofisticada de Badi. Nosso público a quer como cantora, e parece que é assim que ela vai estourar por aqui. Nos EUA, onde a chamam de "guitar goddess", seu lado de instrumentista sobressai. Talvez por isso ela tenha acabado de gravar, também nos EUA, um CD só instrumental, contendo a história do violão brasileiro.
Só se pode esperar que, depois desse jejum vocal, ela vá abrir a boca para valer. Então, quem sabe, saia um CD seu no Brasil.

Texto Anterior: A fábrica de poemas e de sons
Próximo Texto: O escândalo rebelde da face oculta
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.