São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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Divas do matriarcado musical

JÚLIO MEDAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nesta nossa cultura ocidental existem países que se caracterizam por possuir uma música popular vocal-melódica forte e criativa. De acordo com fatores vários, no mais das vezes ligados à natureza do temperamento do povo, essa forma de expressão se manifesta mais adequadamente por meio da voz feminina ou masculina.
Como primeiro exemplo de um cancioneirismo pleno de brilho não poderíamos deixar de lembrar o italiano. Aqui, seja pela natureza das letras, como do próprio fraseado melódico, fica claro que foi concebido, quase em sua totalidade, para o vigor da voz máscula. E para comprovar isso não seria necessário entrar em detalhes técnicos, mas apenas lembrar a recente performance dos Três Tenores, cujo empenho atlético-vocal mais nos dava a idéia de gladiadores exibindo-se numa arena romana que qualquer outra coisa.
Mas a sentimentalidade melodolorosa latina gerou uma outra música vocal rica e inspirada, que muito difere desse exibicionismo frenético dos italianos. Refiro-me à música centro-americana. Expressa por meio de uma refinada coloquialidade "cool" -que nada tem a ver com a breguice de nossos "cantores de churrascaria"- "Los Calientes Boleros" do período áureo contavam com uma variedade de intérpretes raramente vista em qualquer outra música popular. Aqui, também, para cada Elvira Rios, tínhamos Bienvenido Granda, Pedro Vargas, Pedro Infante, Marco Antonio Muniz, Lucho Gatica, Trio Los Panchos, Tito Puente, Cachão, don Alfonso Ortiz Tirado, Roberto Yanés, Raul Moreno, Gaston Perez, Beni More, Armando Manzanero e o hispano-paulista Gregorio Barrios, para lembrar alguns.
Se fôssemos vasculhar um pouco mais na cultura musical popular sul-americana e descêssemos até a Argentina, iríamos encontrar um "machismo musical" ainda mais radical, o do tango. E aqui, mui distante do "macio" do bolero ou da fragilidade camerística de uma bossa nova, por exemplo, se uma infeliz cantora aventurar uma penetração em seus redutos, não apenas a interpretação, mas também o traje, a maquiagem e o próprio corte de cabelo têm que estar de acordo com o código comportamental da "virilidade" masculina portenha.
Mas é a mesma América que nos fornece dois exemplos nos quais o predomínio do canto feminino é quase total: o jazz e a música popular brasileira. Semelhante ao que ocorre na música feita por instrumentos, na qual os mais agudos são os mais ágeis, quando um tipo de criação permite o uso mais diversificado dos recursos vocais e mesmo virtuosismos, parece que o registro da voz feminina se torna mais adequado. Existem alguns cantores que poderiam ser lembrados nos cem anos do jazz, mas nenhum deles possui a importância histórica das quatro grandes divas. Ou seja, ao contrário do que aconteceu no bolero, para cada Billy Eckstine temos Bessie Smith, Sarah Vaughan, Bilie Holliday e Ella Fitzgerald, e, se quisermos lançar um olhar mais abrangente onde as fronteiras do jazz, do "gospel" e da canção não são bem definidas, vamos encontrar uma galeria de preciosidades vocais femininas cuja variedade, qualidade e originalidade inexistem em qualquer outro país.
Só para lembrar as mais conhecidas: Alberta Hunter, Mildred Bailey, Anita O'Day, June Christy, Carmen Mora, Betty Carter, Nina Simone, Nancy Wilson, Julie Driscoll, Helen Merril, Dinah Washington, Etta Jones, Mahalia Jackson, Tina Turner, Diana Ross, Janis Joplin, Aretha Franklin, Roberta Flack e tantas outras. Aliás, se quisermos ver o que ocorre nos palcos da música de concerto dos Estados Unidos, onde também não vamos encontrar nenhum rouxinol masculino de prestígio internacional, teremos a presença de três divinas damas crioulas absolutamente imbatíveis em qualquer ponto do planeta: Barbara Hendricks, Kathleen Battle e Jessie Norman.
No Brasil, a situação não é muito diferente. Com exceção de momentos ou estilos localizados, a grande arte vocal da música popular foi feminina. Poderíamos lembrar preciosos intérpretes masculinos, que foram, na realidade, "cronistas de costumes", que como ninguém retrataram o espírito de uma época ou local. Mais importantes por esses motivos, portanto, do que por seus "dotes vocais" ou interpretativos: Dorival Caymmi, Mario Reis, Noel Rosa, Luis Gonzaga ou Moreira da Silva. Aí pelos anos 30, em consequência da influência dos musicais (brasileiros, vienenses ou americanos), surgiram algumas vozes masculinas respeitáveis, já que no palco a coloquialidade não conta, e sim a projeção vocal. Refiro-me a Francisco Alves, Carlos Galhardo, Nelson Gonçalves e o mais refinado cantor brasileiro de todos os tempos, um verdadeiro Dietrich Fischer-Dieskau de nossa canção: Orlando Silva (ouçam-se as remasterizações de suas gravações dos anos 30, agora lançadas em CD).
No final dos anos 50, quando a música brasileira se aproxima do bolero via samba-canção, além dos cantores já citados que ganham nova força, surge também a figura melodramática de Cauby, que explora à exaustão o sentimentalismo brasileiro -ou latino.
Mas o predomínio vocal feminino em nossa música popular acontece também nos dias de hoje. É só passar uma vista d'olhos na programação de nossos Palaces e Canecões. Shows masculinos que eventualmente ocorrem, como os de Gil ou Caetano, se dão mais pela personalidade criadora de músicas e idéias dessas figuras do que por suas vozes isoladamente, o que não é o caso das cantoras que constantemente se apresentam em grandes espetáculos, nos quais o cultivo dos recursos vocais e interpretativos são evidentes. E aqui a paleta é grande e diversificada: Gal, Bethânia, Marisa Monte, Rita Lee, Simone, Marina, Ângela RoRo, Zizi Possi, Cida Moreyra, Ná Ozetti, Tetê Espíndola, Elza Soares e tantas outras que serão comentadas aqui em outros textos.
Gostaria, porém, de ressaltar o trabalho de quatro divas que já se foram e cujo legado foi da maior importância para a nossa música como um todo: Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Maysa e Elis Regina.
Enfrentando as dificuldades de fazer carreira numa sociedade e num ambiente eminentemente machistas, seguras de seus ideais e da força de seus talentos, estabeleceram novos padrões vocais e comportamentais que serviram de exemplo para gerações subsequentes. Carmen foi, entre as cantoras brasileiras, talvez a que mais habilmente dominava os recursos vocais. Operava com os fonemas com grande facilidade, explorando as arestas das consoantes ou o melodismo das vogais ao extremo, produzia também efeitos guturais, às vezes cacofônicos, outras onomatopaicos, ciente que era do uso dos recursos do microfone.
"Passeava" pelos registros da voz, de um extremo a outro, com grande facilidade, e sempre afinada, mesmo quando fazia um show em que nenhuma vértebra de seu corpo ficava parada. Showwoman como ninguém, além do brilho de seus gestos e expressões faciais, criou o design de seus trajes, que se espalhavam pela cenografia de seus espetáculos e filmes. Foi a mais criativa figura de cantora de seu tempo, sendo também a mais bem paga por Hollywood na época. Sua importância internacional permanece viva até os dias atuais.
No momento em que o rádio carioca era dominado igualmente por duas mulheres que se digladiavam, mas que faziam a mais saborosa crônica de costumes do Rio carnavalesco, Emilinha e Marlene, destacava-se, na outra ponta, a mais perfeita técnica vocal de nossa cultura musical popular, verdadeira "Maria Callas" da praça Mauá, Dalva de Oliveira.
Absolutamente ciente da qualidade de seu stradivarius vocal, Dalva emitia as notas da melodia com a clareza e segurança de uma cantora lírica. E os arranjos, que eram feitos especialmente pelos grandes maestros que prestavam serviço à cultura popular da época, levavam em consideração com grande sensibilidade seus dotes vocais e, no momento das apresentações, as características de sua interpretação cheia de maneirismos. Uma verdadeira ópera popular.
Maysa representa uma outra dimensão nesse quadro vocal-feminino. Massacrada pela vida, soube cantar o trágico não apenas pelo conhecimento de causa, mas por possuir um talento poético e musical que fazia de suas canções e de seu comportamento ousado um verdadeiro libelo. Tentando sempre libertar-se de amarras, chutando sempre entulhos de seu entorno, colocando a voz e a poesia como escudo ou como lança, mesmo mutilada representou um nome único em nossa música, razão pela qual a geração que a seguiu tinha por Maysa verdadeira veneração.
O Brasil não possui produtores musicais que saibam tirar proveito do potencial e do talento de nossos cantores. Por essa razão, depois de muito pouco tempo, eles se tornam redundantes. Uma única cantora em nossa música dispensaria as funções desse multiplicador de talento: Elis Regina. Dona de uma inteligência especificamente musical, soube como ninguém conduzir sua carreira e seu projeto vocal. Associando-se sempre aos melhores músicos do país, cada novo lançamento era uma nova idéia. Por isso sua carreira foi sempre viva, importante e inovadora. Grudada a seus músicos, sabia extrair da desenvoltura da linguagem instrumental as provocações para suas idéias e virtuosismos vocais -como se ela fosse um instrumento entre eles.
Quando em 1972 produzi um programa para a televisão alemã com Elis Regina, convidei Michel Legrand para participar e atuar a seu lado. Depois de um longo convívio e várias atuações memoráveis, ao final do programa Michel Legrand sentava-se no chão do cenário, aos pés de Elis. A câmara dele se aproximava e, apontando a cantora, dizia, olhando firme para as lentes: esta é a maior do mundo.

Julio Medaglia é maestro e crítico de música LEIA textos sobre 23 cantoras brasileiras vivas da pág. 5-4 à pág. 5-10

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