São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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Quem disse que Papai Noel não existe?

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mesmo que seja só por obrigação, quando a gente começa a assistir muita TV, tem a sensação de que os neurônios vão derretendo, o cérebro virando uma espécie de mingau, até que se congela na forma de tijolo -um imenso tijolo de massa encefálica cravado entre a testa e a nuca.
O leitor, que hoje, domingo, já terá vivenciado emoções inomináveis com o especial de Roberto Carlos e dentro de poucos dias poderá se refestelar entre uma garfada de peru, um gole de vinho nacional, uma mensagem espiritual da Xuxa e uma canção daquelas de partir o coração de Leandro e Leonardo (ou será Chitãozinho e Xororó?) -o leitor releve, por gentileza, a dificuldade do crítico (título de cortesia, obviamente) de entrar no espírito natalino. Mas a TV já se encarrega disso por nós.
Um amigo lembra que em dezembro não tem barrigudo desempregado no país. Estão todos na TV com a farda vermelha, saco nas costas, vendendo esperança em até três vezes sem juros e aceitam cartão de crédito.
Enquanto isso o crítico (o título é cortesia do editor, lembre-se) procura um programa diferente para comentar. Liga a TV no final da tarde e o espetáculo que lhe oferecem é uma casa de horrores. Não há o que comentar. A sensação de inutilidade toma conta do que restou de seu ser nocauteado.
Falar do "H", do Luciano Huck? Da "Malhação" global? Rivalizar com a tagarelice giratória de Silvia Poppovic? Mas parecem todos tão felizes, estão todos tão seguros e falantes na sua inocência televisiva. Com que direito estragar o Natal deles todos? O crítico (cortesia, mais uma vez) então se cala.
Sua cabeça vai aos poucos se metamorfoseando naquele mingau. Ainda tem tempo pra lembrar de Gregor Samsa, sente-se um pouco como "o monstruoso inseto" de Kafka, mas os cadáveres que o "190 Urgente" e o "Cidade Alerta" lhe empilham diante dos olhos o devolvem para a imagem insuperável do mingau, igualzinho aos que ele ainda pode ver na tela.
Vem então a noite. O pai de família chega em casa, a sensação do dever cumprido, liga a TV, assiste o seu telejornal, se distrai com Bruno Mezenga, ainda tem energia para rir com Regina Casé antes de cochilar no sofá da sala. Coloca então o pijama e vê uma pontinha do Jô. Nada como um pouco de vida inteligente na TV, pensa consigo antes de dormir o sono dos justos. O pai de família nem imagina do que é capaz a TV num horário tão bucólico como o cair da tarde.
*
A cozinheira da casa de meus pais, a simpática Edileusa (o nome dela é esse mesmo, xará da empregada doméstica mais famosa do Brasil), 30 anos, quatro filhos, moradora de Franco da Rocha, cidade próxima de São Paulo, considerado um dos locais mais violentos do país, onde, segundo ela me ensina, "bobo não tem vez", me pede encarecidamente "pra descer o pau no chato do senador Caxias" porque "ninguém aguenta mais aquele palhaço". Registrado.
Não se sabe por quais motivos, talvez só para homenagear a era FHC, a Globo quis incluir em sua principal novela um político honesto. Por falta de prática e know-how, acabou criando esse "goiaba" completamente inverossímil e caricato, aquele que o pessoal costuma chamar de acerola: vale por vinte laranjas.
O máximo de ironia que a emissora se permitiu foi chamar o personagem de Caxias. Já que o negócio é "science fiction", por que não chamá-lo logo de ACM? Carlos Vereza não é um ator comum, merecia destino melhor.
Quem protesta não é o crítico cri-cri, aquele que é pago para "ver defeito em tudo". É a Edileusa, a quem intuitivamente incomoda tanta empulhação. Alguma coisa deve estar errada. Afinal, não foi a Globo que traduziu para o português o velho dito "vox populi, vox Dei"?

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