São Paulo, segunda-feira, 23 de dezembro de 1996
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Por quê?

RICARDO SEITENFUS

A tomada de centenas de reféns na embaixada japonesa em Lima pelo grupo revolucionário Tupac Amaru aparenta profunda incongruência. Desde meados da década de 1980, a América Latina caminhou para o fim dos regimes militares. Além disso, fizeram-se reformas econômicas liberalizantes, objetivando integrar a região aos circuitos internacionais.
Assim, como podemos entender o drama de Lima, que nos conduz aos anos de chumbo da década de 1970? Tanto no Peru quanto na Colômbia, os movimentos revolucionários consideram a simples democracia representativa como uma farsa e pretendem, com matizes distintos, impor a chamada democracia popular. No caso do Peru, não existe democracia representativa, tampouco Estado de Direito.
Em abril de 1992, o presidente em exercício, Alberto Fujimori, comandou um golpe de Estado, ao fechar o Parlamento e o Judiciário, tornando-se um virtual ditador. Medidas repressivas e de controle das já escassas liberdades públicas foram adotadas, com o beneplácito das Forças Armadas. Um arremedo de campanha eleitoral renovou o mandato de Fujimori em 1995.
Essa ditadura de cunho pessoal é apoiada pelo exterior, notadamente pelos Estados Unidos, pelo Japão e pela maioria dos países sul-americanos, inclusive o atual governo do Brasil. A boa vontade japonesa funda-se nas origens do ditador, que esteve seis vezes no Japão durante seu mandato. Quer se fazer do Peru a porta de entrada nipônica no continente. Isso explica a escolha do atual alvo do Tupac Amaru.
Por outro lado, o Peru enfrenta gravíssima crise econômica, com profundas repercussões sociais. Estatísticas independentes apontam que mais de 70% da população vive na miséria. Lima é considerada, salvo alguns bairros, como uma enorme favela de 7 milhões de habitantes. Sem perspectivas econômicas, oprimidos por uma ditadura personalista e envoltos em inaceitáveis condições sociais, os peruanos representam um caldo de cultura favorável ao surgimento de todos os extremos.
Como pano de fundo, encontramos, tanto na Colômbia quanto no Peru, a onipresença dos narcotraficantes. O fato de produzir mais de 60% da cocaína mundial é um fator de agravamento da já explosiva situação peruana.
Caso o Peru não retorne ao convívio democrático, respeitando o Estado de Direito, e não forneça um conteúdo social à democracia política, a crise persistirá. O país será levado à desintegração territorial, como já ocorre no leste amazônico. Nessas condições, a repressão pela repressão será tão-somente o adiamento de um acerto de contas.
Como vemos, a melhor forma de armar a utopia revolucionária é proceder como Fujimori. O atual episódio do ataque da embaixada japonesa em Lima, por mais condenável que possa ser, é apenas o resultado de sua ditatorial e anti-social administração.
A situação peruana deve servir de alerta às jovens democracias latino-americanas. A ausência de preocupações sociais, o fato de esperar unicamente das instâncias externas soluções para os problemas nacionais, o descontrole das criminosas atividades do narcotráfico e a tentação de impor soluções personalistas e ditatoriais constituem uma fórmula explosiva que, cedo ou tarde, incitará à revolta.
É responsabilidade de todos os verdadeiros democratas estarem atentos para que o drama peruano não se transforme em pesadelo latino-americano.

Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 48, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra (Suíça), é coordenador do mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor de "Uma História Diplomática do Brasil" (em colaboração com José Honório Rodrigues).

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