São Paulo, terça-feira, 24 de dezembro de 1996
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O peru de Natal

(A história de Mário de Andrade, vista pela ótica da vítima)

MOACYR SCLIAR

Tudo começou -disse o peru às outras aves do galinheiro, que o ouviam atentamente- quando aquele tal de Mário de Andrade resolveu fazer o que chamou, usando aspas, de "loucura". Estava brincando, claro, mas o resultado, como vocês logo verão, foi trágico. Pois esse tal Mário, um escritor brasileiro, resolveu homenagear a mãe e umas tias com uma ceia de Natal. Propósito aparentemente generoso, tanto mais que a mãe enviuvara cinco meses antes, e a festa destinava-se a levantar o moral do grupo familiar. De modo que, às vésperas dessa festa -que deveria inspirar sentimentos elevados!- ele anunciou, como quem não quer nada: "Bom, no Natal quero comer peru." Notaram a arrogância, colegas? "Quero comer peru." Ou seja, a vontade dele era soberana. Só porque se tratava de um ficcionista.
O peru fez uma pausa -narrar a história era-lhe penoso, via-se- e continuou:
- Uma tia ainda tentou dissuadi-lo, ponderando que estavam de luto. Mas lá queria saber de luto, o facínora! Tendo transformado a coisa do peru numa "idée fixe", Mário de Andrade iria adiante no seu sinistro propósito. Como ele mesmo escreve: "Comprou-se o peru."
Com a asa, o galináceo enxugou uma lágrima. Com a voz embargada, prosseguiu:
- Este peru, queridos colegas, nada mais era do que o meu bisavô. Uma criatura de nobres sentimentos, incapaz de fazer mal a quem quer que seja. Pois o meu bisavô, colegas, foi comprado pelo senhor Mário de Andrade. Mais; foi imolado, colegas!
As aves não puderam conter um gemido de horror. Mas já o peru, agora tomado de indignação, prosseguia:
- "Fez-se o peru", diz Mário de Andrade. Assim mesmo, colegas: "Fez-se o peru". Ou seja matou-se o peru, recheou-se o peru (com duas farofas, diz ele, a gorda com os miúdos e a seca, douradinha, com bastante manteiga -vejam os requintes de perversidade), e depois comeu-se o peru. "O nosso mais maravilhoso Natal", escreve. Meu bisavô ali morto, e ele se divertindo. Mas o pior ainda está por vir. Imaginem o que ele escreveu, para concluir. Podem imaginar, vocês? Não, não podem. Mas eu sei de cor, tantas vezes li essa passagem satânica.
Deteve-se um segundo, e recitou:
- "O peru já se convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação."
Nova pausa e o peru bradou:
- Já viram hipocrisia como essa, colegas? Já viram?
As aves não responderam: puseram-se em debandada. Porque o cozinheiro vinha vindo, facão na mão. E como disse Mário de Andrade, sem peru, a ceia de Natal não é a mesma coisa.

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